QUINTA PARTE
6 A salvação através do purgatório
O que
temos visto até aqui é que a salvação pela fé prometida pela igreja católica
vem atrelada a uma série de outros fatores que podem significar a perda da vida
eterna por parte do fiel ou a sua não entrada na família de Deus. Além da
mediação de Maria como corredentora do gênero humano como elemento fundamental
à salvação, o fiel católico não pode estar seguro de sua aceitação imediata no
paraíso após a sua morte. Mesmo após viver uma vida piedosa e dedicada a Deus e
à sua “mãe”, ao morrer, ele deverá expiar seus pecados no purgatório,
purificando-se totalmente para “merecer” entrar no céu.
Uma
história relatada por Ligório (1987, p. 42 e 43), dá-nos um exemplo inicial da
importância do purgatório para a salvação da alma do fiel – ou não tão fiel
assim – católico, tendo, inclusive, a mediação direta de Maria, que vai em
socorro dos pecadores que a ela buscam na hora da morte, ou depois dela:
Lê-se na vida de sóror Catarina de S. Agostinho que
havia, no lugar em que morava esta serva de Deus, uma mulher chamada Maria. A
infeliz levara uma vida de pecados durante a mocidade. E já envelhecida, de tal
forma se obstinara na sua perversidade, que fora expulsa pelos habitantes da
cidade, e obrigada a viver numa gruta abandonada. Aí morreu finalmente, sem os
sacramentos e sem a assistência de ninguém. Sepultaram-na no campo como um
bruto qualquer. Sóror Catarina costumava recomendar a Deus em grande devoção as
almas de todos os falecidos. Mas, ao saber da terrível morte da pobre velha,
não cuidou em rezar por ela, pensando, como todos os outros, que já estivesse
condenada. Eis que, passados quatro anos, em certo dia se lhe apresentou diante
uma alma do purgatório, que lhe dizia: Sóror Catarina, que triste sorte é a
minha! Tu encomendas a Deus as almas de todos os que morrem e só da minha alma
não tens tido compaixão? – Mas quem és tu? – disse a serva de Deus. – Eu sou, –
respondeu ela, – aquela pobre Maria, que morreu na gruta. – E como te salvaste?
– replicou sóror Catarina. – Sim, eu me salvei por misericórdia da Virgem
Maria. – E como? – Quando eu me vi próxima à morte, estando juntamente tão
cheia de pecados e desamparada de todos, me voltei para a Mãe de Deus e lhe
disse: Senhora, vós sois o refúgio dos desamparados. Aqui estou neste estado
abandonada por todos. Vós sois a minha única esperança, só vós me podeis valer;
tende piedade de mim. Então a Santíssima Virgem obteve-me a graça de eu poder
fazer um ato de contrição; depois morri e fui salva. Além disso, esta minha
Rainha alcançou-me a graça de ser abreviada minha pena por sofrimentos mais
intensos, porém menos demorados. Só necessito de algumas missas para me livrar
mais depressa do purgatório. Rogo-te que faças celebrar. Em troca prometo-te
pedir sempre a Deus e à Santíssima Virgem por ti.
O purgatório não é uma morada eterna, mas um lugar transitório de
purificação, onde as almas que não foram totalmente purificadas de seus pecados
em vida vão esperar o momento de subir aos céus. A palavra “purgatório” não é
encontrada na Bíblia, mas o catolicismo romano apresenta vários textos que
pretendem indicar claramente a sua existência. De fato a Bíblia não fala sobre
este lugar, mas os textos utilizados pelos doutores de Roma, inclusive de
livros apócrifos como II Macabeus, nos dão a entender que a passagem por ele é
real e necessária. Todavia, as fontes mais abrangentes sobre tal doutrina não
partem das Sagradas Escrituras, mas da Tradição. Conforme podemos ver em
Tertuliano (160-240): “Uma vez por ano oferecemos os sacrifícios pelos mortos,
como se fosse o seu dia de aniversário”. Nos túmulos dos primeiros cristãos,
segundo relada José Antônio Jorge (1999) podemos ler até hoje: “Lembrai-vos de
nós nas vossas orações, nós que morremos antes de vós”.
O purgatório não é mencionado na
Bíblia, embora inúmeros textos tenham sido utilizados durante os séculos para
comprovarem a sua existência (conforme veremos na refutação). Na verdade, este
dogma começou a ser ensinado na igreja somente a partir do ano de 593 (século
VI), vindo a ser transformado em artigo de fé muito mais tarde, no ano de 1439
(século XV), isto é, mais de mil anos após a morte e ressurreição de Cristo e o
início da igreja cristã. Este dogma veio evoluindo conforme a conveniência da
igreja romana e está diretamente ligado a outro dogma, o das Indulgências. Um relato da história do
cristianismo nos mostra claramente como, no tempo de Lutero, as indulgências
eram tratadas. Estando em Roma, as pregações de Martinho Lutero começaram a
conquistar muitas pessoas, atraindo uma contenda com um monge dominiciano de
Leipzig, chamado João Tetzel. Este tinha vindo a Roma vender indulgências. Seu
discurso trazia uma visão medonha do purgatório, conquistando o auditório e
despertando grande solicitude para com as almas que ali estavam penando. Dizia
aos seus ouvintes que não havia pecado passado, presente ou futuro que tivessem
cometido ou iriam cometer que não pudessem lavar com as indulgências. Segundo
Knight e Anglin (1997, p. 213 e 214), dizia ele:
“Eu não trocaria o meu privilégio... pelo de
S. Pedro no Céu, porque eu tenho salvo mais almas com as minhas indulgências do
que o apóstolo com os seus discursos (...) Padres, nobres, mercadores, esposas,
moços, moças... ouçam a vossos pais e amigos já mortos, gritando-vos do abismo
profundo: ‘Nós estamos sofrendo um martírio horrível! Uma pequena esmola nos
poderia salvar; vós podeis dá-la, e contudo não quereis fazer!’ Ouçam esses
gritos, e saibam que logo que soar uma moeda no fundo da caixa a alma solta-se
do Purgatório e dirige-se em liberdade para o Céu... Como sois surdos e
desleixados! Com uma insignificante quantia podeis livrar o vosso pai do
Purgatório, e apesar disso sois tão ingratos que não comprais a sua liberdade!
No dia do juízo eu serei justificado, mas vós sereis castigados tanto mais
severamente por terdes desprezado tão grande salvação”.
Depois deste convincente discurso, os fiéis correram
ao encontro de vendedor de indulgências para efetuar suas compras, não
necessitando confessar seus pecados, fazer penitência ou sequer se arrepender.
No lugar disso, receberam documento assinado por Tetzel, em Nome do Pai do
Filho e do Espírito Santo, restituindo-lhes a pureza que tinham no batismo e
garantindo-lhes a inocência de seus atos. Tais indulgências cobradas no passado
para o livramento das dores das almas do purgatório, ainda são praticadas e fazem
parte dos ensinamentos católicos. A consequência desta doutrina é a de se
considerar a salvação de Cristo insuficiente e o perdão de Deus ineficaz. A
igreja católica romana faz divisão entre pecados veniais e pecados mortais,
como se todos os pecados não fossem iguais. O Catecismo da Igreja Católica
(cân. 1472) se reporta às indulgências e à necessidade do purgatório da
seguinte forma:
Para compreender esta doutrina e esta prática da
Igreja [indulgências], é preciso admitir que o pecado tem uma dupla consequência. O pecado grave priva-nos da comunhão com
Deus e, consequentemente, nos torna incapazes da vida eterna; esta privação se
chama “pena eterna” do pecado. Por outro lado, todo pecado, mesmo venial,
acarreta um apego prejudicial às criaturas que exige purificação, quer aqui na
terra, quer depois da morte, no estado chamado “purgatório”. Esta purificação
liberta da chamada “pena temporal” do pecado. Essas duas penas não devem ser
concebidas como uma espécie de vingança infligida por Deus do exterior, mas,
antes, como uma consequência da própria natureza do pecado. Uma conversão que
procede de uma ardente caridade pode chegar à total purificação do pecador, de
tal modo que não haja mais nenhuma pena.
Embora estas almas
penadas tenham já se purificado no batismo, conforme atesta a doutrina
romanista, Deus parece não estar satisfeito; ainda resta algo a ser purgado,
pago, regenerado. Desta forma, a Graça de Deus torna-se insuficiente e é
manipulada conforme os dogmas do catolicismo. O que mais impressiona, porém, é
o fato de haver uma classe de pessoas escolhidas para ir para o purgatório
baseado na quantidade e qualidade de seus pecados. O tanto que sofrerão lá e o
tanto de tempo que por lá penarão dependerá da forma como viveram na terra.
Assim se expressou o concílio de Trento sobre o assunto:
840. Cân. 30. Se alguém disser que a todo pecador penitente, que recebeu
a graça da justificação, é de tal modo perdoada a ofensa e desfeita e abolida a
obrigação à pena eterna, que não lhe fica obrigação alguma de pena temporal a
pagar, seja neste mundo ou no outro, no purgatório, antes que lhe possam ser
abertas as portas para o reino dos céus — seja
excomungado [cfr. n° 807].
É necessário que os vivos intercedam por seus entes mortos para que
estes se purifiquem de seus pecados e possam gozar um dia da glória de Deus.
Isto é, que façam tudo aquilo que o morto deveria ter feito em vida e não fez,
por diversos motivos. Apenas as almas dos que foram martirizados têm acesso
direto ao céu, não necessitando da nossa intercessão, pelo contrário,
tornando-se nossos intercessores junto a Deus e Jesus Cristo. Assim é o caso de
Maria, que, segundo a doutrina romanista, subiu corporalmente aos céus, não
experimentando a corrupção de corpo. Entre os sufrágios pelas almas do
purgatório, os principais são: oração pelos mortos, conforme o cân. 134 do
Vaticano II; missas e obras de caridade.
Um dos principais personagens da doutrina do purgatório conforme atesta
S. Ligório (1987), é Maria. Ela tem um papel decisivo na vida – ou na morte –
daqueles que cumprem pena nesse lugar de fogo purificador. Vejamos alguns dos
principais textos:
6.1 Maria consola as almas que estão cumprindo pena no purgatório
Maria tem domínio e
poder sobre o purgatório, podendo livrar as almas completamente de suas penas.
Principalmente os devotos de Maria são frequentemente assistidos por ela,
obtendo para eles mais indulgências e alívio. Por ser mãe de todas as almas que
ali cumprem pena, ela está constantemente orando por elas para que suas penas
sejam mitigadas (p. 192).
Assim
também as almas do purgatório enchem-se de alegria, só em ouvir pronunciar o
nome de Maria. – O nome só de Maria, nome de esperança e de salvação, que
continuamente invocam naquele cárcere, lhes dá um grande conforto.
6.2 Maria
livra as almas do purgatório
Além de consolar os
seus devotos, Maria os livra com a sua intercessão. Diz-se (Gerson) que na sua
Assunção, esvaziou-se o purgatório, pois Maria havia pedido a Jesus que a
deixasse levar todas as almas que estavam lá. Em dias de festividades, como o
Natal e a Páscoa, Maria desce ao purgatório acompanhada de muitos anjos e livra
muitas almas daquelas penas. Ela mesma prometeu ao papa João XXII que aqueles
que trouxessem o Escapulário seriam livres do purgatório no primeiro Sábado
depois da morte (p. 194).
Se
quisermos, pois, ajudar às santas almas do purgatório, procuremos rogar por
elas à Santíssima Virgem em todas as nossas orações, aplicando-lhes
especialmente o santo rosário, que lhes dá um grande alívio.
6.3 Maria
salva as almas destinadas ao inferno
Muitos estariam agora
no céu se tivessem se deixado conduzir pela Virgem Maria. Ela tem as chaves das
portas do paraíso; ela é a escada do céu; ela é cheia de graça e pode salvar
quem rogar por ela. Como Senhora do céu, ela pode introduzir ali quem bem quiser,
desde que não lhe sejam postos obstáculos e desde que a tenham servido,
atravessando por ela, que é a porta da salvação, para chegar até Deus. É certo
que ninguém pode ter certeza da salvação – segundo o autor católico – mas basta
o patrocínio de Maria para se salvar (p. 199).
Rezando
um dia a novena da Assunção, a serva de Deus Sóror Serafina Capri (como se lê
na sua biografia), pediu à Santíssima Virgem a conversão de mil pecadores. Mas
logo depois temeu fosse talvez muito ousado o seu pedido. Apareceu-lhe a Virgem
e repreendeu-a de seu vão receio com as palavras: Por que duvidas? Por acaso
não tenho tanto poder para alcançar de meu Filho a salvação de mil pecadores?
Pois olha que eu vou obtê-la agora mesmo. E levada em espírito ao céu por Maria,
viu Serafina inúmeras almas de pecadores que tinham merecido o inferno, mas que
pela intercessão da Virgem estavam salvos e já gozavam da bem-aventurança.
O absurdo desmedido desta doutrina
demonstra com clareza a incoerência que existe em todas as doutrinas e dogmas
católicos. Apresenta-se Pedro e seus sucessores como detentores das chaves do
Reino dos Céus, únicos capazes de ligar e desligar, de decidir quem entra e
quem sai, de lançar no purgatório as almas ou livrá-las de lá. Ao mesmo tempo
mostram todo este poder nas mãos de Maria, dependendo as almas da sua
intercessão, do seu favor; dependendo também de terem vivido sob sua proteção e
graça.
Além disso, tudo o
que vimos sobre Maria e o purgatório exclui totalmente o livre agir do Espírito
Santo e a operação da Graça salvadora de Deus em Cristo Jesus. Se isso não
bastasse, Maria leva para o céu até mesmo aquelas pessoas que mereciam ter ido
para o inferno. Que pessoas são essas? São aquelas que não fazem a vontade de
Deus (Mateus 7:21), não ouvem nem praticam a sua Palavra (Mateus 13:19). Estes
são os impuros, injustos, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões,
avarentos, bêbados, maldizentes, roubadores, incontinentes, covardes,
incrédulos, abomináveis, assassinos, feiticeiros e mentirosos que a Palavra de
Deus garante que não herdarão o seu Reino (1 Coríntios 6:9; Efésios 5:5;
Apocalipse 21:8). Isto é, embora tenham rejeitado a salvação e vivido segundo
sua própria vontade, agora estão no céu, porque Maria, ofendida em seu orgulho,
quis dar uma prova de que realmente tinha poder. Estará Maria acima de Deus e
de sua Palavra?
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