QUARTA
PARTE
5 A salvação através de Maria
A essência da adoração católica romana
não gira em torno do Pai, do Filho ou do Espírito Santo, mas da pessoa de
Maria. Portanto, é essencial e conveniente que ela seja revestida de poderes e
de uma mística diferenciados dos outros personagens bíblicos, é importante que
suas virtudes sejam superespiritualizadas e suas ações superexaltadas. De outro
modo, nada justificaria tamanha veneração e adoração. Por que o mundo se
importaria com uma mulher comum cuja única ação significativa tivesse sido dar
à luz ao Salvador? Não, ela precisaria de muito mais que isso, como, por
exemplo, ser ela, também, salvadora, redentora da humanidade. E é isso que
Ligório (1987, p. 118) pensa da sua amantíssima mãe:
Quando nos
dirigimos a esta divina mãe, não só devemos ficar certos de seu patrocínio, mas
às vezes seremos até mais depressa atendidos e salvos chamando pelo nome de
Maria, do que invocando o Santíssimo Nome de Jesus, nosso Salvador. E eis a
razão que dá o escritor (Eádmero): Cristo, como Juiz, tem o ofício de punir; a
virgem como padroeira tão somente tem o de compadecer-se. Quer dizer que
achamos a salvação mais depressa junto à mãe que junto ao Filho
A doutrina da correndenção de Maria
é explicitamente demonstrada por diversos escritores romanistas e tem como base
principal o “sim” pronunciado pela mãe carnal de Jesus ao ser abordada pelo
anjo Gabriel com a notícia de que conceberia e daria a luz ao Salvador. Esta
doutrina é tomada por alguns como sendo uma visão superespiritualizada e por
outros como uma correndenção em sentido analógico. Se formos, porém, analisar o
que tem sido escrito, pregado e vivido a respeito desta doutrina, veremos que
Maria teve uma participação intrínseca na redenção efetuada por Cristo na cruz,
sendo, inclusive, indispensável ao destino do justo. Mas não foi somente o sim
de Maria a Deus, mas também o sim de Deus a Maria. Com isso concorda o padre
Olívio Reato:
O sim do Pai a
Maria foi a solução providencial para a salvação da humanidade pelo Filho
encarnado no ventre dessa Mãe venturosa, criatura indispensável para a
realização do plano salvítico no qual Deus se tornou homem e foi sacrificado
por nós.[1]
A doutrina da correndenção de Maria,
que também a faz de “medianeira” entre Deus e os homens, está no documento
conciliar do Vaticano II, Lumen Gentium.
O cânon 149 explica que “a materna missão de Maria a favor dos homens de modo
algum obscurece nem diminui esta mediação única de Cristo, mas até ostenta sua
potência”. Maria tem os méritos de Cristo computados a seu favor, de modo que
os dois são indissociáveis no projeto de redenção de Deus para a humanidade.
Sem Maria e o seu consentimento, do qual Deus dependia para realizar sua obra
salvítica, a humanidade estaria perdida para sempre. Portanto, segundo a
doutrina católica, devemos agradecer a Maria a nossa salvação eterna.
Gabriel Roschini (1960), autor que
sofreu descrédito por parte da própria igreja católica por causa da
superespiritualização dada a Maria, descreve o Sim de Maria a Deus da seguinte
forma (p. 88):
Com efeito,
enviando um Anjo à Virgem para pedir seu livre
consentimento à Encarnação do Redentor, Deus quis, de fato, que a obra da Redenção dos homens dependesse do seu consentimento. Portanto, dando livremente o consentimento pedido,
pronunciando livremente aquele seu fiat que,
no dizer de Santo Tomás de Vilanova, foi muito mais poderoso do que o
pronunciado por Deus para a criação do mundo, Maria concorreu proximamente para
a Redenção do gênero humano e tornou-se, na verdade, Corredentora do mundo.
Todos somos, portanto, devedores dEla pela nossa redenção.
Esta
doutrina pode ser melhor ainda analisada através do livro Glórias de Maria, o
qual já vimos estudando desde o princípio. Nele o autor coloca Maria como peça
fundamental e necessária a redenção efetuada por Cristo, sendo que sem a sua
participação humilde, abnegada e voluntária, esta redenção jamais teria se
concretizado. Portanto, analisaremos a questão sob os seguintes pontos:
1)
Já que o pecado entrou no mundo por uma mulher e um homem (Adão e Eva), a
salvação teria de vir também de outro homem e outra mulher: o homem seria Jesus
Cristo e a mulher, Maria (p. 141):
Uma sentença de S.
Bernardo diz: Cooperaram para a nossa ruína um homem e uma mulher. Convinha,
pois, que outro homem e outra mulher cooperassem para nossa reparação. E estes
foram Jesus e Maria, sua Mãe. Não há dúvida, diz o Santo, Jesus Cristo, só, foi
suficientíssimo para remir-nos. Mais conveniente era, entretanto, que para
nossa reparação servissem ambos os sexos, assim como haviam cooperado ambos
para nossa ruína.
2)
A salvação da humanidade dependeria da resposta de Maria às palavras do anjo.
Pelo sim de Maria pôde Jesus nascer para morrer pelos nossos pecados (p. 287):
Eia, ó querida mãe,
já se vos oferece o preço da nossa salvação, que será o Verbo Divino em vós
feito homem. Se o aceitais por Filho, seremos imediatamente livres da morte. O
mesmo Senhor nosso, pelo muito que está enamorado de vossa beleza, muito deseja
vosso consentimento, por cujo intermédio determinou salvar o mundo. Respondei,
Senhora, depressa; não retardeis mais ao mundo a salvação, que de vosso
consentimento agora depende.
3)
Para que Jesus se sacrificasse por nós na cruz, também dependeríamos do
consentimento de Maria. Não seria simplesmente a morte de Cristo na cruz que
salvaria o homem, mas primeiramente o consentimento de sua mãe (p. 313):
Havia já o Eterno
Pai determinado salvar o homem perdido pela culpa, e livrá-lo da morte eterna
(...) Mandou-o, portanto, à terra a fazer-se homem, destinou-lhe a Mãe, a qual
quis que fosse a Virgem Maria. Mas como fez a Encarnação do Verbo Divino
depender do consentimento de Maria, também dele fez questão para que Jesus se
sacrificasse pela salvação dos homens.
4)
Apesar de a Palavra de Deus afirmar em João 3:16 que “Deus amou o mundo de tal
maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna”, o que temos da doutrina Mariana é que Maria e não
Deus enviou seu filho à morte (p. 56 e 57):
Qual não deve ser a
nossa gratidão para com Maria Santíssima por tanto amor, por tanto sacrifício
que fez da vida do seu Filho, com tão grande dor sua, a fim de nos alcançar a
salvação? (...) Pois não vemos como ela nos amou mais do que todas as
criaturas, como entregou por nós seu Filho único, a quem amava mais do que a si
mesma?
5)
Desta forma, se Jesus veio ao mundo através de Maria, só o acharemos através da
sua mediação (p. 321):
S. Simeão teve
promessa do Senhor, de não morrer antes de ver nascido o Messias. Mas esta
graça ele não a recebeu senão por intervenção de Maria, porquanto não achou o
Salvador, senão nos braços de Maria. De onde vemos que quem achar Jesus não o
achará senão por meio de Maria.
Com isso concorda também Montfort
(1998, p. 17), afirmando inclusive que “Foi por intermédio da Santíssima Virgem
que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio dela que ele deve reinar no
mundo”.
6)
Diante de tudo isso, dessa dependência total de Cristo à pessoa de Maria e da
nossa dependência do seu “sim” salvador, passamos a depender, também, do seu
perdão (p. 68):
Em o vendo a seus
pés a implorar-lhe perdão [o pecador], não olha para o peso dos seus pecados,
mas para a intenção com que se apresenta (...) A própria Virgem Santíssima
assim revelou a S. Brígida. “Por mais culpado que seja um homem, se vem a mim
com sincero arrependimento, estou sempre pronta a acolhê-lo. Não considero a
enormidade de suas faltas, mas tão somente as disposições do seu coração. Não
recuso ungir e curar as suas feridas, porque me chamo e realmente sou Mãe de
Misericórdia.
E
também (p. 321 e 322):
Se são grandes os
nossos pecados, maior é o poder de Maria (...) Se Jesus está irado contra nós,
Maria depressa o aplacará (...) Não sabes, Lúcifer, que uma súplica de minha
Mãe, a favor de um pecador, basta para fazer-me esquecer de todas as acusações
de ofensas a mim feitas?
7)
Não é em outro ser, senão em Maria, que encontramos a graça salvadora de Deus
(p. 268 e 269):
Só a Jesus e a
Maria foi dada tão abundante graça, que seria suficiente para salvar a todo
gênero humano (...) À vista disso o Santo exorta-nos a considerarmos com que
amor quer que o Senhor que honremos essa grande Virgem, na qual colocou todos
os tesouros de sua riqueza. Fê-lo assim, a fim de que quanto temos de
esperança, de graça e de salvação, tudo agradeçamos à nossa amantíssima Rainha.
Ainda
mais enfaticamente declara Montfort (idem, p. 255):
Ou, ainda, pedi a
Jesus, em união com Maria, que, por meio dela venha à terra o seu reino, ou a
divina sabedoria, ou o amor divino, ou o perdão de vossos pecados, ou qualquer
outra graça, mas sempre por Maria e em Maria.
8
– Desta forma, o que se conclui é que sem Maria não temos acesso à salvação (p.
43):
O douto e piedoso
Suárez, da Companhia de Jesus, o sábio e devoto Justo Lipsio, doutor da
universidade de Lovaina, e muitos outros, provaram incontestavelmente, apoiados
na opinião dos Santos Padres... que a devoção à Santíssima Virgem é necessária
à salvação, e que é um sinal infalível de condenação – opinião do próprio
Ecolampádio e vários outros hereges, – não ter estima e amor à Santíssima
Virgem.
A participação ativa e direta de
Maria no “mistério da redenção” não é somente difundida e pregada entre os
santos católicos do passado, mas na atualidade ela se encontra bem firmada no
Catecismo da Igreja Católica (nº494):
Ao anúncio de que,
sem conhecer homem algum, ela conceberia o Filho do Altíssimo pela virtude do
Espírito Santo, Maria respondeu com a “obediência da fé”, certa de que “nada é
impossível para Deus”: “Eu sou a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua
palavra” (Lc 1,37-38). Assim, dando à Palavra de Deus o seu consentimento,
Maria se tornou mãe de Jesus e, abraçando de todo o coração, sem que nenhum
pecado a retivesse, a vontade divina da salvação, entregou-se ela mesma
totalmente à pessoa e à obra de seu Filho, para servir, na dependência dele e
com Ele, pela graça de Deus, ao Mistério da Redenção.
O que podemos concluir de tudo isso
é que sem a correndenção de Maria não há possibilidades para o ser humano de
alcançar a salvação. Sem uma devoção constante e abnegada à mãe de Jesus, o
salvo pode até mesmo perder-se. Isto a faz não somente corredentora, mas a
detentora da justiça divina, a porta do céu, a manipuladora da Trindade de
Deus. A obra de Cristo na cruz passa a não ser mais a obra única e perfeita da
redenção, mas apenas uma consequência da obra realizada por Maria ao pronunciar
o seu “sim” à saudação angélica. Não seria muito dizer que, segundo pudemos
entender através dos textos expostos, que não é Maria corredentora, mas sim
Jesus! Maria é o personagem principal do plano salvítico de Deus e Jesus apenas
um ator coadjuvante.
Deve-se lembrar que nenhuma destas
doutrinas encontra qualquer apoio na Bíblia. A palavra de Deus não oferece
qualquer indício, direto ou indireto, que nos leve a crer que Maria teve alguma
participação na obra de redenção, senão a de ser escolhida para ser o meio pelo
qual Jesus haveria de nascer. Os textos citados pelos Santos Padres da igreja
romana e seus doutores são usados de maneira leviana e não fornecem base para
sua crença, o que nos leva diretamente a refutá-los e desprezá-los,
condenando-os como heresia.
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