3.2. Tradição e Dogma
Uma das grandes consequências da
Tradição católica romana é a criação de dogmas estranhos à Bíblia. Na história
do Cristianismo, onde durante séculos o catolicismo imperou com sua hierarquia
e seus anátemas, muitos dogmas foram decretados como forma de defender a fé
evangélica contra doutrinas que, inclusive, desacreditavam a divindade de Jesus
Cristo e a divina inspiração da Bíblia. Foram muitas as heresias surgidas desde
os tempos de Jesus: as heresias judaicas; o Ebionismo, que não aceitava Cristo
como o Filho de Deus; o Nicolaísmo, que condenava o Deus da criação; o
Gnosticismo, uma heresia bastante complexa combatida pelos apóstolos; os
Antitrinitários, que rejeitavam a doutrina da Trindade; o Maniqueísmo, que teve
como adepto o próprio Agostinho; o Pelagianismo, que ensinava que não era
necessário a graça para se salvar. Somam-se a estas o Arianismo, o Monofissismo
e tantas outras heresias que até hoje incomodam os cristãos. Para nós, protestantes,
o neopentecostalismo e sua “Teologia da Prosperidade” está entre as heresias
mais terríveis da modernidade cristã.
Contra todas essas heresias a igreja
católica se levantou, organizou Concílios, emitiu bulas e criou dogmas. Muitos
desses dogmas estão coerentes com a Bíblia, em especial aqueles que defendem a
divindade de Cristo e a Trindade. O Concílio de Niceia e o de Constantinopla I
defenderam a doutrina da Trindade. O Concílio de Constantinopla I (381),
confirmou a doutrina bíblica da divindade de Cristo. Contra tais resoluções
conciliares não cabem argumentos contrários, uma vez que as verdades defendidas
por eles estão claramente expressas na Bíblia. Desta forma, um dogma de fé para
ser aceito necessita ter comprovação bíblica, levando-se em conta a sua
totalidade, Antigo e Novo Testamentos, utilizando-se da iluminação do Espírito
Santo e de instrumentos corretos de hermenêutica. Assim, podemos crer, por
exemplo, na doutrina da salvação pela graça como um dogma de fé, como também na
obra redentora de Cristo e na sua segunda vinda, onde julgará o mundo.
Mas será que todo dogma é bíblico?
Quando a mesma igreja que decretou sabiamente e baseada nas Escrituras Sagradas
o dogma da divindade de Cristo institui a doutrina do purgatório, algo totalmente
alheio à verdade contida nas Sagradas Escrituras, devemos tomar também como um
dogma de fé? Quando, em 1545, o Concílio de Trento decretou dogmas como os
sacramentos, a missa, a veneração e invocação dos santos, o purgatório e as
indulgências, devemos crer que são verdades de Deus e por isso devemos
aceitá-las como dogmas de fé? Quando o concílio Vaticano I decretou o governo
de Deus sobre a sua criação (SB 8,1) e que Ele cria livremente todas as coisas
do nada (DS 3025), mas ao mesmo tempo decreta, na Constituição Dogmática Pastor Aeternus, o primado e a infalibilidade do papa, devemos tomar esse
último como Palavra de Deus, como dogma de fé irrefutável? Se por um lado a
igreja católica se esforçou para defender a fé cristã contra as grandes e
pequenas heresias, por outro lado, por meio do Pala Adriano I, instituiu, no
Concílio de Nicéia I, no ano 787, o culto à Maria (hiperdulia). Então, temos duas espécies de dogmas: aqueles que
podemos comprovar por meio da Bíblia, e aqueles que são totalmente estranhos a
ela. Nos primeiros devemos crer, mas os segundos devemos combater.
Então o que é dogma? Será que tudo o
que foi estudado na obra de Montfort e diversos outros autores marianos a
respeito das doutrinas e dogmas referentes à Maria são dogmas dignos de fé? Os
católicos romanos sabem fazer a distinção entre um dogma bíblico e um
extra-bíblico? Na teologia protestante, o termo dogma tem o sentido de doutrina
e diz respeito àqueles pontos de fé aprendidos por meio das Sagradas
Escrituras e cridos por toda a cristandade. Ele faz parte do métodos
Especulativo de interpretação utilizado pela Teologia Sistemática, que também
envolve os métodos Teológico, Místico e Indutivo (Hodge, 2001). O dogmatismo
pode ser um apego demasiado à razão em detrimento da fé, por ser uma
demonstração filosófica de como as coisas são ou devem ser. O dogmatismo
transporta a autoridade e infalibilidade da verdade revelada à falibilidade do
intelecto humano (Hodge, idem). As doutrinas apresentadas pelo dogma seriam,
portanto, conclusões da mente humana diante da revelação divina em detrimento
da autoridade de Deus e das Escrituras Sagradas.
Hodge toma o testemunho das
Escrituras contra o dogmatismo racional. Ele afirma que os escritores bíblicos
se apresentam no caráter de testemunhas, como instrumentos de Deus e não com
base em demonstrações racionais e filosóficas. A primeira, última e suficiente
razão para a fé é: “Assim diz o Senhor” (p. 36). O seu evangelho era sustentado
pelo testemunho de Deus, asseverando que suas doutrinas “eram matéria de
revelação, para serem recebidas com base no testemunho divino”. De fato, o
evangelho pregado pelos apóstolos, as epístolas do Novo Testamento e todos os
escritos do Antigo não são parte de uma racionalização humana, mas da sabedoria
de Deus. O próprio apóstolo Paulo, conhecedor profundo da Lei e excelente
pregador cristão, não pregava o evangelho seguindo seus próprios pensamentos (1
Coríntios 1:17), mas pela sabedoria de Deus (vs. 18-25). Para ele, a sabedoria
deste mundo era loucura para Deus (3:19). A sabedoria que interessa ao crente é
aquele que é do alto e que provém de revelação divina (12:8; Tiago 3:17), isto
é, a Palavra de Deus: a Bíblia.
Quanto ao significado do dogma para
o católico, o fiel leigo, isto é, a grande maioria do povo católico, certamente
não saberia dar uma explicação correta. Um texto postado na Internet por um
católico que descreve dez razões pelas quais não é protestante, traz a seguinte
assertiva:
Nossos queridos
protestantes não sabem o que são dogmas... Pensam que a Igreja, ao dogmatizar
um ponto de fé afirma algo do tipo: “a partir de agora, todos acreditamos
nisto”. Só que não é assim! A Igreja, ao dogmatizar algo, diz claramente: “os
cristãos, sempre, desde os primórdios, e em todos os lugares, acreditaram nisto,
pelo que não é lícito a nenhum católico duvidar que esta é a fé verdadeiramente
cristã.” Portanto, importa muito pouco que um dogma tenha sido proclamado no
século IV ou no século passado. O fato é que os cristãos sempre acreditaram
neles.
Se como pontos de fé aceitos pelos
cristãos desde sempre o autor está se referindo à Tradição católica romana na
pessoa de seus santos e papas, ele tem razão naquilo que diz. Como já vimos, o
dogma da Imaculada Conceição atravessou os séculos até se tornar um ponto de fé
católico. Isto significa que desde épocas remotas do cristianismo ele era crido
como verdadeiro. Porém, isto não é para animar os fiéis católicos. Muitas
heresias eram cridas e pregadas muito antes de se falar sobre esse dogma, como
o Gnosticismo. A luta da igreja católica durante séculos de sua existência
sempre foi a de combater tais heresias, determinando aquilo em que criam e o
que deveria ser considerado como anátema. O Concílio de Trento,
reconhecidamente contra os pilares da Reforma Protestante, ditou suas regras e
escolheu no que crer, deixando de lado aquilo que considerava herético. Então,
só porque os cristãos acreditaram em algo durante séculos não quer dizer que
isto seja verdade e tenha o mesmo peso da revelação divina e bíblica. Os homens
são muito prodigiosos no invento de doutrinas que não se encontram na Bíblia.
Ao afirmar que os protestantes não
sabem o que são dogmas, o missivista apenas demonstra ele próprio desconhecer o
significado dos dogmas para a igreja católica romana. A respeito da definição
dos dogmas, o Catecismo da Igreja Católica (n. 88, grifo meu), se expressa da
seguinte maneira:
O Magistério da
Igreja empenha plenamente a autoridade que recebeu de Cristo quando define
dogmas, isto é, quando, utilizando uma forma que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé, propõe
verdades contidas na Revelação divina ou verdades que com estas têm uma conexão
necessária.
De acordo com Schneider (2000, p. 27),
citando F. Diekamp, dogma é “uma verdade revelada diretamente por Deus,
proclamada pelo Magistério da Igreja de forma clara e definitiva para todos os
cristãos, como objeto de fé católico e divina obrigatória”. Essa dogmática é
supostamente orientada pelas Sagradas Escrituras, mas estas sob a orientação do
Magistério, que também deve levar em conta as autoridades teológicas
reconhecidas, principalmente da época dos Pais da Igreja. Neste trabalho, o
bispo de Roma pode gozar da infalibilidade papal, podendo pronunciar em última
instância, a palavra que decide ou também exclui (Schneider, idem). A dogmática
atua como uma interpretação da autocomunicação de Deus, estabelecendo as normas
de fé para serem cridas pelos fiéis. Como visto, um dogma não é algo que se
possa desacreditar, mas é uma obrigação que de fato diz: “A partir de agora
todos devem acreditar nisto”.
É sob esta fórmula que apela para a
autoridade do Magistério da igreja e a infalibilidade dos papas que o
catolicismo romano engendrou seus dogmas durante os séculos. Os dogmas, embora
sejam confirmados como regras de fé definitivas e irrevogáveis, podem ser
desconsiderados de acordo com as conveniências histórias e circunstanciais da
igreja. Na relação existente entre a Tradição e as Sagradas Escrituras, há uma
estreita união e comunicação, de modo que ambas formam a mesma fonte divina e
tendem para o mesmo fim (Dei Verbum, 67).
Existem, porém duas modalidades distintas de transmissão dessas fontes comuns.
Enquanto a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus redigida sob a direção do
Espírito Santo, a Tradição é a transmissão e a interpretação da Palavra de Deus
confiadas por Cristo e pelo Espírito Santo aos apóstolos e seus sucessores.
Assim, a igreja católica não deriva apenas da Bíblia a certeza de tudo o que
foi revelado por Deus, mas ambas, Escritura e Tradição “devem ser aceitas e
veneradas com igual sentimento de piedade e reverência” (CIC, 82; Dei Verbum,
9).
O Catecismo da Igreja Católica (n.
83) faz uma diferenciação entre Tradição Apostólica e Tradições Eclesiais. A
primeira atesta o processo da Tradição viva da igreja, uma vez que não havia
nada escrito na primeira geração de cristãos. A segunda, diz respeito às
tradições teológicas, disciplinares, litúrgicas e devocionais surgidas ao longo
do tempo nas Igrejas locais. Á luz da primeira Tradição, tais tradições “podem
ser mantidas, modificadas ou mesmo abandonadas, sob a guia do Magistério da
Igreja”. Com isto podemos entender que a compreensão de algum ponto de fé
determinado no passado pelos santos padres pode ser, no presente, mantido,
modificado ou abandonado. Isto é, embora as Tradições católicas façam parte do
depósito da fé da igreja e partam de uma interpretação ex cathedra de seus magistrados; e embora os fiéis sejam levados a
acreditar que tal ponto de fé é verdadeiro e por isso deve ser seguido, em
algum momento ele pode ser revogado. Então, o que é a verdade?
O exemplo mais clássico que podemos
citar é o da Santa Inquisição. Este acontecimento histórico que se impôs sobre
o mundo durante muitos séculos, colocou na prisão e assassinou incontável número
de pessoas que não criam em Deus da mesma forma que os católicos criam. Mesmo
muitos padres católicos tiveram de enfrentar os tribunais inquisitoriais, bem
como os judeus, os protestantes e as “bruxas”. Foi em 1179 que o Concílio de
Latrão decretou a perseguição permanente aos “hereges” (Peres, 1998). Em 1215,
o mesmo Concílio decretou que os bens dos “hereges” fossem confiscados pelos
governos. A verdadeira Inquisição, porém, foi organizada pelo papa Gregório IX
(1181-1185), no Concílio de Verona.
Não é o objetivo deste estudo fazer um
relato minucioso das práticas cruéis e desumanas engendradas pelos tribunais da
“Santa Inquisição”, mas comparar as doutrinas do passado católico com as do seu
presente. O início do Malleus Maleficarum,
escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, traz uma
bula escrita pelo papa Inocêncio VIII, a 9 de dezembro de 1484, com o seguinte
prólogo (2002, p. 43):
Desejando, na mais
sincera apreensão, como bem requer o Nosso Apostolado, que a Fé Católica,
mormente em Nossos dias, cresça e floresça por todas as partes, e que toda a
depravação herética seja varrida de todas as fronteiras e de todos os recantos
dos Fiéis, é com enorme satisfação que proclamamos e inclusive reafirmamos os
meios e métodos particulares pelos quais Nosso desejo piedoso poderá surtir os
efeitos almejados, já que quando todos os erros forem erradicados pela Nossa
dissuasão diligente, como pela enxada do agricultor previdente, um maior zelo e
uma observância mais regular de Nossa Santa Fé venham a ficar firmemente
impressos no coração dos fiéis.
Também o Directorium Inquisitorum, o Manual dos Inquisidores, escrito por
Nicolau Eymerich em 1376, traz inúmeras revelações a respeito da intolerância
dos líderes da Sé romana contra os “hereges”. Eram considerados como ameaças,
por exemplo, aqueles blasfemadores que se opunham aos dogmas da igreja católica
ou maldiziam o Senhor e a Virgem Maria. A insistência em permanecer no seu erro
diante dos tribunais da Inquisição significaria a sua entrega ao braço secular
(p. 49, 50), que se encarregaria de assassiná-los, pois a igreja não podia
jamais derramar sangue. Um ato de extrema hipocrisia. Nos julgamentos, eram
empregados alguns meios – conforme prometido pelo papa Inocêncio VIII – para
arrancar a confissão dos supostos hereges: apetrechos de mutilação, o balcão de
estiramento, a cadeira das bruxas, a cadeira inquisitória, a cadeira
inquisitória menor, a caixinha para as mãos, o cavalete, a cegonha, o
despertador, o esmaga-cabeça, o esmaga-joelho, o esmaga-polegar, o
esmaga-seios, a forquilha do herege, o garrote, a guilhotina, o machado, a
máscara da infâmia, a mesa de evisceração, o pêndulo, a roda alta, a roda de
despedaçamento, o tronco e a virgem de Nuremberg (Peres, idem).
Além do que já foi dito, inúmeros
livros de História geral e da religião podem ser consultados como uma forma de
aprofundamento do tema. Quanto ao nosso estudo, vimos que os líderes da igreja
católica romana, falando ex cathedra, na
posição de alter Christus, em posse do
múnus da infalibilidade, utilizando-se do depósito da fé, pronunciando-se com
base na Tradição viva da igreja, decretaram um tribunal sanguinário,
intolerante e espúrio que até hoje causa vergonha e constrangimento aos
próprios católicos. Lendo-se “O Martelo das Feiticeiras”, o que se vê é que os
inquisidores tinham seus atos bárbaros e sanguinários baseados na Bíblia! Então
eles estavam errados? Mesmo tomando por base o texto bíblico e com o múnus da
infalibilidade a Inquisição teria sido um trágico equivoco?
Como vimos acima, o Catecismo da
Igreja Católica tem uma saída para esse labirinto de enganos. O que foi
expresso como uma verdade pode ser mantido, modificado ou abandonado. E é o que
foi feito: foi abandonado. Hoje, dentro de uma visão totalmente diferente, e
embora ainda considerando a igreja católica romana como única e verdadeira, os
papas não perseguem mais os “hereges”, mas se unem a eles em prol da paz no
planeta. Os judeus outrora perseguidos e mortos são considerados irmãos; os
muçulmanos assassinados na tentativa de tomada da Terra Santa pelos Cruzados,
são considerados amigos. Principalmente a partir do Concílio Ecumênico Vaticano
II, a igreja romana prega o diálogo com outras religiões. E o discurso
inquisitório do passado é trocado, na Verbum
Domini, por um discurso mais amistoso
em prol do diálogo e da liberdade religiosa (n. 120):
Todavia o diálogo
religioso não seria fecundo, se não incluísse também um verdadeiro respeito por
toda a pessoa para que possa aderir livremente à sua própria religião. Por isso
o Sínodo, ao mesmo tempo que promove a colaboração entre os expoentes das
diversas religiões, recorda igualmente “a necessidade de que seja efetivamente
assegurada a todos os crentes a liberdade de professar, privada e publicamente,
a sua própria religião, e também a liberdade de consciência”, de fato “o
respeito e o diálogo exigem a reciprocidade em todos os campos, sobretudo no
que diz respeito às liberdades fundamentais e, de modo muito particular, à
liberdade religiosa. Tal respeito e diálogo favorecem a paz e a harmonia entre
os povos”.
Com um discurso totalmente diferente
e inverso que aquele de Inocêncio VIII, o papa Bento XVI nos mostra como é
impossível crer na infalibilidade do papa em matéria de fé e de moral cristãos.
Mas nos mostra algo ainda mais importante: a necessidade de nos voltarmos
completamente para a Bíblia como nossa única regra de fé, de moral e de prática
cristãs – Sola Scriptura! O que a Palavra de Deus inicia falando em Gênesis, ela
termina confirmando até o Apocalipse. Não existe contradições, mudança de
opiniões. Muito pelo contrário: o próprio Deus, por meio dos seus profetas,
denuncia o afastamento do seu povo das verdades divinas. É a ignorância quanto
aos desígnios de Deus que nos leva ao erro, a sabedoria que não provém de Deus
e por isso não pode gerar a verdadeira adoração (cf. Jeremias 8:7-9). Por isso
o apelo bíblico pela boca do profeta Oséias: “Conheçamos e prossigamos em
conhecer ao Senhor” (6:3), para que não erremos por falta de conhecimento das
Escrituras e nem do poder de Deus, como os fariseus (Mateus 28:29).
Outro exemplo pertinente é o da
forma como o Concílio Ecumênico de Trento (1545-1563) trata a leitura da Bíblia
e como ela diverge completamente do Vaticano II e da Verbum Domini. Assim se
expressam os sumo pontífices no Concílio de Trento (n. 785, 786):
Além disso, considerando que poderá resultar em não
pequena utilidade para a Igreja de Deus, dando-se a conhecer qual de tantas
edições latinas que correm dos Livros Sagrados se deve ter por legítima, esse
mesmo sacrossanto Concílio determina e declara: que nas preleções públicas, nas
discussões, pregações e exposições seja tida por legítima a antiga edição da
Vulgata, que pelo longo uso de tantos séculos se comprovou na Igreja; e que ninguém,
sob qualquer pretexto, se atreva ou presuma rejeitá-la [...] Ademais, para
refrear as mentalidades petulantes, decreta que ninguém, fundado na perspicácia
própria, em coisas de fé e costumes necessárias à estrutura da doutrina cristã,
torcendo a seu talante a Sagrada Escritura, ouse interpretar a mesma Sagrada
Escritura contra aquele sentido, que [sempre] manteve e mantém a Santa Madre
Igreja, a quem compete julgar sobre o verdadeiro sentido e interpretação das
Sagradas Escrituras, ou também [ouse interpretá-la] contra o unânime consenso
dos Padres, ainda que as interpretações em tempo algum venham a ser publicadas.
Os que se opuserem, sejam denunciados pelos Ordinários e castigados segundo as
penas estabelecidas pelo direito. [Seguem uns preceitos sobre a impressão e
aprovação dos livros, onde se estabelece entre outras coisas o seguinte:]
que para o futuro a Sagrada Escritura, principalmente essa antiga edição da
Vulgata, seja publicada do modo mais exato possível; e que a ninguém seja
permitido imprimir ou fazer imprimir qualquer livro sobre assuntos sagrados sem
o nome do autor, nem vendê-los ou retê-los consigo, se não forem primeiro
examinados e aprovados pelo Ordinário…
Além de proibir a leitura da Bíblia na
língua vulgar (popular), determinando a versão latina como correta e oficial, o
Concílio proíbe qualquer interpretação que exceda aquela advinda da “Santa
Madre Igreja”. As pessoas não podiam interpretar a Palavra de Deus fora dos
ditames dos padres, como também não deveriam publicar o fruto de sua
interpretação, sob o risco de serem castigadas segundo pelas estabelecidas.
Além disso, os livros teológicos estavam proibidos sem uma anterior aprovação
da igreja. É claro que isto afetava diretamente a nascente Reforma Protestante
e visava freá-la.
Já no ano 600, o papa Gregório I já
havia imposto a língua latina como idioma oficial dos cultos nas igrejas. Em
1287, o Concílio de Valença viria a proibir a Bíblia aos leigos. O Concílio de
Trento apresenta o seu cânone dos livros sagrados, incluindo diversos
apócrifos, e promete excomungar quem não os aceitasse na íntegra e na Vulgata
(n. 783): “Se
alguém não aceitar como sacros e canônicos esses livros na íntegra com todas as
suas partes, como era costume serem lidos na Igreja Católica e como se encontram
na edição antiga da Vulgata Latina; e desprezar ciente e premeditadamente as
preditas tradições: - seja excomungado”. Esses fatos nos mostram como sempre foi a relação da igreja católica
com a Bíblia e o cuidado que sempre teve em jamais permitir opiniões próprias
dos leigos, principalmente se contrárias àquilo que ela pregava. Basta um olhar
para a História para percebermos que a conquista do crente pela leitura e
interpretação da Palavra de Deus custou muito tempo, lágrimas e sangue.
A Verbum Domini, entretanto, tem um objetivo bastante
claro e específico: incentivar os fiéis a lerem e estudarem a Palavra de Deus.
Ao contrário do Concílio de Trento que determinou, sob pena de excomunhão, a
tradução e a leitura da Bíblia apenas na Vulgata (versão latina da Bíblia
realizada por São Jerônimo por volta do final do século IV a pedido do papa
Dâmaso), a Verbum Domini, constatando que várias igrejas locais
ainda não dispunham de uma tradução integral da Bíblia na sua própria língua,
determinou (115,2):
Por isso, o Sínodo considera importante, antes de mais nada, a formação
de especialistas que se dediquem a traduzir a Bíblia nas diversas línguas.
Encorajo a que se invistam de recursos neste âmbito. De modo particular, quero
recomendar que seja apoiado o empenho da Federação Bíblica Católica para um
incremento ainda maior do número de traduções da Sagrada Escritura e da sua
minuciosa difusão. Bom será que tal trabalho, pela própria natureza, seja feito
na medida do possível em colaboração com as diversas Sociedades Bíblicas.
Embora a tradução, a leitura e a
interpretação da Bíblia, como temos visto, estejam sempre sujeitas ao
Magistério e aos papas, o texto citado demonstra uma diferença gritante na
mentalidade do Concílio Ecumênico de Trento e da exortação pós-Vaticano II, a Verbum
Domini. Munidos da mesma autoridade apostólica, baseados na mesma
Tradição da igreja e conduzidos pelo mesmo múnus da infalibilidade, os papas de
diversas épocas conseguem criar dogmas que se contradizem, que se tornam
incoerentes. Se a palavra conciliar do papa é verdadeira e definitiva como
dogma de fé, a Bíblia ainda deveria estar sendo lida em latim e as demais
versões nas línguas populares deveriam ainda estar sendo proibidas. E se hoje
entende-se e pratica-se o contrário, ou o Concílio de Trento errou ou o
Vaticano II e a Verbum Domini estão equivocados. Novamente
perguntamos: O que é a verdade?
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Mas o purgatório ESTÁ nas Sagradas escrituras. E aparece em várias passagens, não com este nome específico, mas deixa claro que há um lugar onde é expiado pecados depois da morte.
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