O cristão moderno
carece enormemente de pensamento crítico, da capacidade bereiana de confirmar
nas Escrituras se aquilo que se prega é de fato aquilo que a Bíblia ensina. A
autoridade interpretativa da revelação de Deus migrou da Bíblia para os líderes
religiosos e as letras das músicas que são cantadas na Igreja. Como os
"ungidos do Senhor", os pastores parecem falar ex cathedra, com uma infalibilidade quase papal ou com a autoridade
de um Isaías ou de um Jeremias. A Bíblia não interpreta mais ela mesma, como
seria o correto de acordo com as regras da Hermenêutica, mas está sujeita aos
usos que se faz dela e às revelações e profecias que a aplicam da maneira como
bem entende o místico evangélico.
Assim como ocorria
na Idade das Trevas, muitos crentes entendem que a palavra do seu líder é
definitiva, que aquilo que ele está pregando é o conteúdo da verdade de Deus e
por isso não cabem questionamentos. Questionar significa pôr em dúvida a
autoridade do guia espiritual e correr o risco de ser excomungado, tratado como
herege. De fato, o pastor possui autoridade espiritual sobre a congregação como
quem há de prestar contas dela um dia. Ele deve ser respeitado e honrado.
Porém, o que ele não possui é o múnus da infalibilidade como pretendem os
católicos em relação aos "sucessores de são Pedro". Qualquer pessoa
que pregue a Palavra de Deus está sujeita a errar, ou por má fé ou por falta de
conhecimento. Em ambos os casos o resultado pode ser desastroso quando a Igreja
não exerce a sua capacidade crítica e questionadora, engolindo de bom grado
tudo aquilo que ouve e dizendo amém para qualquer heresia sem se perguntar se
as coisas são de fato assim. O que um crente consciente e crítico diria da
seguinte declaração postada em uma rede social: “Ser pastor não é apenas usar
uma gravata, mas é arrancar almas do inferno”?
Essa falta de
capacidade crítica parece ser fruto de um investimento em longo prazo de certos
pregadores e denominações que aos poucos foram retirando dos seus fiéis não
somente o poder e o direito de pensar e questionar, como também a destreza
espiritual de ler a Bíblia e compreendê-la. Aliado a isso, os anseios do
cristão moderno são imediatistas e individualistas demais para permitirem que
tenham vontade, tempo e paciência de ler e estudar a Palavra de Deus. Quando as
ovelhas não conhecem o seu pastor, atendem ao chamado de qualquer lobo
devorador. Surge, então, outra questão ainda mais séria: aqueles que são de
Deus, que pertencem a Cristo conhecem e ouvem a sua voz. Isto significa que o
fato de muitos crentes não darem ouvidos a Palavra de Deus e preferirem aquilo
que aplaca a coceira dos seus ouvidos e satisfaça aos desejos do seu coração,
pode denunciar que não façam parte do rebanho do Senhor.
Por que, diante de
uma pregação de conteúdo duvidoso, alguns crentes se indignam e conseguem
provar por meio das Escrituras que o pregador se equivocou, enquanto outros
simplesmente dizem o habitual amém e saem sentindo-se abençoados? Por que a
Confissão Positiva é nitidamente uma heresia para alguns e para outros é a
vontade de Deus? Por que objetos mágicos, mantras e unções são para alguns o
poder de Deus e para outros, grandes aberrações? A diferença pode estar no tipo
de espírito que opera dentro de cada lado ou, numa visão mais amena, no uso que
cada um faz da Bíblia. Alguns seguimentos do protestantismo há muito
abandonaram a Bíblia como referencial. Ou melhor dizendo: deixaram de ser
influenciados por ela. Não se deixam usar pela Palavra de Deus, mas usam-na
para seus próprios fins espúrios. O crente sincero nem sempre consegue
discernir entre verdade e heresia, pois a sua capacidade de pensar criticamente
não foi despertada. Poderíamos dizer, também: ainda não perceberam que possuem
o Espírito Santo que os capacita a discernir as coisas espirituais.
É preciso lembrar
que a Reforma Protestante foi fruto dessa visão crítica da realidade e do
estudo espiritual da Bíblia. Em 1517, as indulgências estavam em alta e
cobravam-se altos preços pela salvação da alma e o alívio das suas dores num
suposto purgatório. O monge católico Martinho Lutero, cuja capacidade
questionadora incomodava a santa Sé, propôs uma drástica mudança na doutrina e
nas práticas católicas romanas por meio das suas 95 teses fixadas na porta da
catedral de Wittimberg, no dia 31 de outubro daquele ano. O que o levou a essa
revolução reformatória? A leitura da Palavra de Deus, com a constatação de que
o justo viverá por fé (cf. Rm 1:17; Gl 3:11; Hb 10:30). Lutero olhou para a
realidade e comparou-a com a Bíblia. A tese de nº 90 afirma: “Refutar estes
argumentos sagazes dos leigos pelo uso da força e não mediante argumentos da
lógica, significa entregar a Igreja e o papa a zombaria dos inimigos e
desgraçar os cristãos”. Em seu pensamento, os líderes da igreja romana deveriam
considerar aquelas teses de maneira lógica, racional, buscando compreender as verdades
que ele estava afirmando. O contrário disso seria entregar o povo à total ignorância
e promover o mal testemunho da Igreja.
O resultado da tentativa
de Lutero de reformar a teologia da Igreja que ele amava e servia foi a rejeição
por parte do papa Leão X e do clero, a sua excomunhão, o Concílio
tridentino anti-reforma e o acirramento da Inquisição. E os frutos foram: a
Bíblia na linguagem do povo, o afastamento gradativo das heresias romanas, o
livre pensamento cristão, que passou a ter o poder que pensar de forma crítica
a sua fé e a questioná-la, o surgimento de grandes mestres na Igreja, o avanço
do cristianismo e a alegria de amar e servir a Deus de forma racional. Se hoje
temos um pluralismo muito grande se seitas e heresias protestantes, significa
que aos poucos a cristandade perdeu a sua capacidade de questionamento, o seu interesse
genuíno pela verdade bíblica. Uma das verdades da Reforma é: reformados e
sempre reformando. A Igreja não está no auge do seu conhecimento teológico,
mas ainda há muito que ser aprendido. Ela também não alcançou o ápice da sua
santidade; até a glória existe um longo caminho. Estamos sempre crescendo e
desenvolvendo a nossa salvação. Às vezes algo vai ficando pelo caminho e
precisa ser recuperado. Em outras vezes são acrescentados elementos que devem
ser abandonados.
O neoliberalismo
teológico não é um caminho sem volta. O entorpecimento da mentalidade
evangélica também não é algo irreversível. Reformados e sempre se reformando.
Precisamos pensar, questionar, meditar com afinco na Palavra de Deus, de forma
construtiva e com a intenção correta e santa de inculcar na nossa mente e na
mente daqueles que estão sob os nossos cuidados a verdade de que o centro da
nossa vida e da nossa fé precisa ser o Senhor Jesus e a sua Palavra. Não existe
espaço para exaltações egocêntricas nem para lobos devoradores e as suas
heresias. Se a Reforma Protestante colocou a Bíblia na mão dos crentes, devemos
fazer com que ela saia da mão e penetre fundo no coração, com a graça de Deus, no poder do Espírito Santo. Temos a Palavra e o
Espírito que a revelou e a interpreta. Qualquer ensino ou pregação que não aponte
para a cruz de Cristo e que não anseie pela sua volta gloriosa precisa ser questionado.
Qualquer canção, por mais bela que seja, que contenha elementos contrários à sã
doutrina deve ser eliminada do culto público e do nosso louvor pessoal. Qualquer
tentativa de acrescentar ou retirar um “i’ ou um “til” da Palavra de Deus deve ser
considerada um atentado contra Deus. Reformados e sempre reformando em busca de
uma teologia sadia, enquanto esperamos a volta do nosso Senhor Jesus. Amém.
Mizael Xavier
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