Aqui aprenderemos formas geralmente
aceitas pela Igreja cristã de interpretação das Sagradas Escrituras. Não é o
objetivo deste estudo apresentar subsídios para estudos teológicos
aprofundados, que requereriam o estudo dos manuscritos originais, entre outras
coisas, mas oferecer ao estudante leigo e/ou iniciante da Palavra de Deus
condições de entender o que a Bíblia nos diz na nossa própria língua. Uma das
maiores barreiras para esta empreitada abençoada não é nem tanto o não saber
como fazer, mas o fazer da forma incorreta. Existem muitos erros cometidos na
interpretação da Bíblia, não somente por aqueles que não possuem ainda
familiaridade com ela, mas também, e principalmente, por muitos que já a
estudam a anos e o fazem cometendo sempre os mesmos erros. Então, antes de
aprendermos o “como fazer”, vamos aprender o “como não fazer”.
Alguns dos erros a serem evitados
pelo estudioso da Bíblia são:
Fundamentalismo versus literalismo
Algumas correntes cristãs criticam a
leitura “fundamentalista” da Bíblia por confundirem-na com a leitura
literalista. Para eles, o fundamentalismo se atém ao texto sem levar em conta a
interpretação, praticando a Bíblia ao pé da letra. Esta informação é
inverídica. Na verdade, o fundamentalismo e o literalismo se diferem bastante.
O fundamentalismo foi um movimento americano surgido na primeira metade do
século XX e buscava manter um firme compromisso com certos “fundamentos” da fé
cristã, como uma reação à teologia liberalista ou modernista que se tornavam
bastante populares nas igrejas e seminários protestantes. Dessa forma, o
fundamentalismo defende as principais verdades bíblicas aceitas por católicos e
protestantes, como os acontecimentos miraculosos registrados na Bíblia, a
concepção e o nascimento virginal de Cristo, a sua ressurreição e a sua segunda
vinda gloriosa. Os liberais ou modernistas rejeitarão essas crenças (GRENZ,
GURETZKI, NORDILING, 2005). Logo, o fundamentalismo é sadio, ele defende as
principais doutrinas cristãs contra as inovações teológicas que pretendem
retirar da Bíblia a sua inspiração divina, tratando-a apenas como um livro de
religião, histórias e fábulas.
O literalismo também tem a sua
funcionalidade. De acordo com os autores supracitados, o literalismo busca uma
“Fidelidade rigorosa a determinada palavra ou significado, tanto na
interpretação como na tradução de textos bíblicos”. O seu objetivo é
compreender a intenção do autor dentro do próprio texto e do seu contexto, não
para os dias de hoje, mas para os leitores originais para os quais o texto fora
escrito. Busca-se o significado mais claro e evidente do texto, segundo a
opinião do intérprete, alcançando o máximo de exatidão. Então onde está o erro
a ser evitado? O erro está em não interpretar corretamente o que o texto diz,
deixando de levar em conta as figuras de linguagem da Bíblia, produzindo uma
interpretação equivocada. Aqueles que criticam o fundamentalismo e o
literalismo, geralmente não levam ao pé da letra o que deveriam levar. Vamos a
dois exemplos:
1)
João 4:16-18. O texto completo (1-18) mostra o encontro de Jesus com a mulher
samaritana. Em seu diálogo, o Senhor Jesus demonstra sua onisciência,
demonstrando já conhecer a vida daquela mulher. Contra o fundamentalismo e o
literalismo, alguns estudiosos afirmam que os versículos 16 a 18 não devem ser
interpretados de forma literal, isto é, a samaritana não era uma prostituta nem
alguém com um sério problema de relacionamento que já possuíra vários maridos,
mas que Jesus estava falando simbolicamente, referindo-se à religião pagã dos samaritanos
que adoravam diversas divindades. Todavia, todo o texto nos mostra claramente
que a fala de Jesus dizia respeito á vida pessoal da samaritana, e isso é
comprovado mais adiante, no v. 29. Sendo assim, a interpretação aqui deveria
ser literalista.
2)
Mateus 5:27-32. Este é um texto que não deve ser compreendido de forma
literalista, no sentido de tomá-lo ao pé da letra. Jesus não está dizendo que
devemos arrancar o olho fora ou cortar a mão. Ele está usando esses termos de
maneira simbólica para demonstrar como deve ser o nosso trato com o pecado,
porque o pecado não é culpa nem do objeto do nosso desejo nem do nosso olho ou
da nossa mão, mas do nosso coração. Leia Marcos 7:21,22 e veja como está no
coração o que faz os olhos desejarem e as mãos pegarem. Então devemos arrancar
o coração? Certamente que não! O remédio verdadeiro é a conversão e a
santificação.
Espiritualização
indevida
A leitura antifundamentalista das
Escrituras acaba pendendo para dois lados: o liberalismo, que veremos mais
adiante, e a espiritualização dos textos. Espiritualizar (ou alegorizar) é ir
além daquilo que o texto realmente diz na tentativa de encontrar um sentido
mais profundo. Muitas igrejas pentecostais e, acima de tudo, neopentecostais,
costumam usar desse artifício em seus ensinos e pregações. Esse tipo de leitura
retira totalmente o sentido original do texto e leva-o a dizer aquilo que o
estudioso ou pregador deseja que ele diga. Por exemplo, usar o texto da
passagem do povo hebreu pelo deserto para dizer que estamos enfrentando um
deserto na nossa vida, mas Deus está conosco e vai nos dar a vitória. Ou o de
Davi e Golias para falar dos nossos inimigos ou das nossas dificuldades. Embora
seja uma aplicação prática do texto, não é sobre isso que ele fala. Deus não
vai abrir o mar na nossa vida, nem vai fazer cair maná do céu, muito menos
derrubar as muralhas como fez em Jericó. São interpretações espiritualizadas e
equivocadas. É preciso diferenciar o que a Bíblia diz à nação de Israel e o que
diz a nós, Igreja.
O liberalismo teológico e a neo-ortodoxia
O pior erro na interpretação da
Bíblia é o liberalismo teológico. Ele desconstrói praticamente tudo aquilo em
que os cristãos ortodoxos acreditam. O liberalismo
teológico extrapolou questões meramente teológicas sobre a autenticidade da
Bíblia e a existência de Deus, como apregoavam os deístas. Ele infiltrou-se
mesmo nas confissões ortodoxas, que creem na existência de Deus, na inspiração
das Escrituras e na divindade de Cristo, bem como na historicidade e na
veracidade dos milagres Bíblicos, do nascimento virginal de Jesus, na sua
ressurreição dentre os mortos, na sua volta gloriosa para o resgate da sua
Igreja e o julgamento final. Tal liberalismo, reconhecendo as Escrituras,
negam-na através de suas práticas antibíblicas, que não se resumem à criação de
heresias, mas que se estendem à moralidade e à ética cristãs. Temas polêmicos
como o aborto, a eutanásia, a pena de morte e o homossexualismo são defendidos
por tal teologia e por aqueles que dela se servem, segundo o que lhes for
conveniente. Para os liberais, não existem milagres na Bíblia, a criação do
mundo e do homem são baseadas em mitos, o dilúvio não existiu nem a passagem do
Mar Vermelho. Eles creem que a Bíblia não é a Palavra de Deus e está repleta de
erros.
A
neo-ortodoxia (nova ortodoxia) vinha resgatar o lugar de Deus e da Bíblia na
vida da Igreja, colocando freios ao idealismo pós-moderno e liberal, bem como
pós-neoliberal, para trazer a cristandade de volta à forma correta de entender
e viver a sua fé. Os neo-ortodoxos, segundo Nicodemus (2012, p. 87),
levantaram-se contra a rigidez e o ceticismo do liberalismo, que não deixava a
voz de Deus ser ouvida através da Bíblia. Os neo-ortodoxos, porém, mantêm a
visão equivocada de que a Escritura está repleta de erros e contradições,
afirmando que, ainda assim, Deus fala hoje. Segundo eles, “O maior de todos os
milagres é exatamente que Deus nos fala através de palavras imperfeitas,
erradas, imprecisas e equivocadas desse livro” (NICODEMUS, idem). Sem descartar
a posição dos liberais, a neo-ortodoxia desejava manter a relevância bíblica,
criando um paradoxo teológico insustentável à luz da ortodoxia. Eles criam que
a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas “contém a Palavra de Deus”, que deve ser
descoberta pelo intérprete. Um grande equívoco.
Eisegese ou Exegese?
Para
interpretar a Bíblia é preciso mergulhar em seu conteúdo para extrair dele o
seu real significado, aquilo que o autor quis dizer para os leitores originais.
Somente após fazer este caminho, chegando a uma interpretação correta do texto,
é podemos aplicá-lo corretamente na nossa própria realidade. Dificilmente
textos como Deuteronômio 21:18-21, Levítico 19:27 e Números 5:1-4 terão algum
significado para nós nos dias de hoje. Por outro lado, não podemos espremer a
Bíblia para forçá-la a dizer o que queremos que ela diga. Os espíritas hão de
encontrar em suas páginas textos que supostamente apóiam a teoria da
reencarnação. Os teólogos da prosperidade irão até ela e tirarão os textos que,
segundo eles, comprovam que Deus quer que fiquemos todos financeiramente ricos.
Os teólogos da libertação acharam que a libertação do homem pouco ou nada tinha
a ver com a salvação da alma, mas com a libertação social. Todos mergulharam na
Bíblia e a interpretação do seu ponto de vista, não do que Deus havia escrito.
Este
é um dos maiores problemas na leitura e na interpretação da Bíblia,
especialmente para os iniciantes. O leitor está passando por problemas pessoais
e tem se sentido triste e oprimido. Ele então abre a Bíblia e busca nela textos
que digam algo ao seu coração. Claro que encontrará, mas nem sempre será o
texto correto. Sempre nos aproximaremos da Palavra de Deus em busca de
respostas para as nossas dores e crises existenciais, o que não é errado. Mas é
necessário fazer uma interpretação correta antes de aplicarmos qualquer texto à
nossa vida pessoal. Esse movimento errôneo ao qual estamos nos referindo
chama-se “eisegese”. Em seu livro, Correia Júnior (2006, p. 9), traz como
primeiro passo da análise do texto bíblico a eisegese. Ele explica que esta
palavra vem do grego, sendo formada por eis
(“para dentro”) + egese (“movimento”,
“condução”). É aquilo que, segundo o autor, motiva-nos a buscar o texto
bíblico, o interesse que nos impulsiona às Sagradas Escrituras. Embora seja
verdade que ninguém se aproxima do texto sem fazer questionamentos da vida
cotidiana, o autor erra ao afirmar que “São nossos interesses hermenêuticos que
darão início à análise e, provavelmente, percorrerão todo o trabalho até a
reflexão hermenêutica final” (idem). Essa forma equivocada de interpretação
bíblica é que tem gerado inúmeros equívocos interpretativos e não poucas
heresias. Quem assim procede, não está interessado em conhecer o que a Bíblia
diz, mas encontrar apoio bíblico para aquilo que se quer dizer. Então, o que é
correto fazer ao abrirmos a Bíblia para lê-la e interpretá-la? O correto é
fazer a “exegese”, como veremos mais adiante.
A
Bíblia serve ao que ela se propõe
A
Bíblia trata sobre a Revelação de Deus, aquilo que Ele escolheu nos revelar
acerca da sua pessoa e da sua vontade. Nela encontraremos a direção de Deus
para todas as áreas da nossa vida e até para a nossa eternidade. Logo, a Bíblia
contém respostas para tudo dentro daquilo que ela se propõe a responder. Não adianta
buscarmos na Palavra de Deus explicações para eventos científicos, pois não
encontraremos. De onde vêm os dinossauros? A Bíblia não explica.
A
Bíblia também não se propõe a ser um livro de sortes. Não existe nada de
místico nela. Ela não é um talismã. Algumas pessoas abrem a Bíblia a esmo,
apontam para ela, lendo o primeiro versículo onde o dedo tocar. Ao fazerem
isso, creem que Deus está falando com elas naquele momento. Não importa o tempo
e o texto, a Bíblia sempre será Deus falando conosco, mas não é assim que
devemos fazer. Não podemos escolher um texto aleatoriamente para segui-lo sem
estudá-lo primeiramente, pois corremos inúmeros riscos. O primeiro é de não ter
a real vontade de Deus para nós naquele momento, o segundo é fazer a coisa
errada, dependendo do texto que escolhemos. Costuma-se dizer que uma pessoa que
estava passando por terríveis problemas pegou a Bíblia e a abriu
aleatoriamente, lendo o versículo em que o seu dedo pousou. Ela leu Mateus
27:5: “Então Judas jogou o dinheiro dentro do templo e, saindo, foi e
enforcou-se”. Julgando ter lido o texto errado, fez nova tentativa. O seu dedo
caiu em Lucas 10;37, bem onde diz “Vá e faça o mesmo”.
Não
adianta ter a Bíblia aberta em casa no Salmo 91, porque ela não vai proteger o
nosso lar contra coisa alguma. Não adianta recitar o Salmo 23 (ainda que eu
ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum...) ao passar por uma
rua escura de madrugada, porque isso não vai nos proteger contra assaltos. Não
resolve nada, no momento da aflição, dizer: Tudo posso naquele que me
fortalece. Os textos bíblicos não são mantras! A Palavra de Deus foi escrita
para ser lida, estudada, compreendida e obedecida, isto é: ela precisa se
transformar em prática na nossa vida. Muitos leitores se atém somente ao livro
dos Salmos, enquanto outros preferem ler apenas os Evangelhos. Tanto um quanto
outro estão em busca daquilo que é do seu interesse. Mas a Bíblia deve ser
entendida como um todo. Os Evangelhos são o cumprimento do que foi escrito nos
outros livros do Antigo Testamento. As epístolas são as diretrizes para a
Igreja. muitos pregadores se atém apenas aos livros do Antigo Testamento e
sustentam a fé da Igreja apenas com eles, acima de tudo os textos que falam de
promessas. Mais adiante veremos mais a fundo essa questão.
Outra
forma errada de lidar com a Palavra de Deus é explicá-la baseados em
“achismos”. Já participei de alguns cursos bíblicos onde as pessoas eram
indagadas a respeito de algum tema bíblico e iniciam as suas explicações
afirmando categoricamente: “Eu acho...”. Após essa declaração, as explicações
que se seguem não são acompanhadas de qualquer base bíblica. Por exemplo: “Eu
acho que após a morte ficamos num estado de suspensão espiritual aguardando a
volta de Jesus”; “Eu acho que ninguém pode afirmar que é salvo”; “Eu acho que a
pessoa não peca nunca mais depois de convertida”, “Eu acho que a salvação está
só em Jesus”. São muitas afirmações, algumas verdadeiras, outras falsas, mas
todas desprovidas dos devidos textos bíblicos. Tudo o que afirmamos, falamos,
escrevemos ou ensinamos a respeito da Palavra de Deus deve ter base bíblica
sólida. Não basta dizermos que achamos que vamos para o céu, é preciso
comprovar isso através da Bíblia.
O
perigo da leitura tendenciosa
Certo dia, ao orar, veio-me à mente o livro
do profeta “Jeremias 33 e 34”. Após terminar a oração, peguei a Bíblia para ler
e constatei que não existia versículo 34 no capítulo 33 e que este só ia até o
versículo 26, mas o versículo 3 do capítulo 33 estava sublinhado. Está escrito:
“Invoca-me, e te responderei; anunciar-te-ei coisas grandes e ocultas que não
sabes”. Somente este versículo bastaria para me alegrar durante o dia inteiro e
me colocar a espera da minha “vitória oculta” que o Senhor iria me trazer. Mas
eu sabia que o que Deus queria era que eu lesse os capítulos 33 e 34 inteiros.
E foi o que eu fiz. Descobri que as coisas ocultas que Deus queria revelar ao
profeta Jeremias eram, na verdade, o pecado do povo de Israel e a forma como o
Senhor os entregaria nas mãos dos caldeus, por conta da sua desobediência aos
seus mandamentos. Com o objetivo santo e soberano de corrigir e purificar o seu
povo, Deus retribuiria com juízo o mal que eles estavam causando. O Senhor diz
a Jeremias: “Eis que darei ordem, diz o Senhor, e os farei tornar a esta
cidade, e pelejarão contra ela, tomá-la-ão e a queimarão a fogo; e as cidades
de Judá porei em assolação, de sorte que ninguém habite nelas” (34:22).
Essa experiência me lembrou o quanto somos
tendenciosos a buscar versículos na Bíblia que vão ao encontro das nossas
necessidades, e dizemos que Deus falou, revelou e confirmou nossos anseios e
questionamentos. Mas a Bíblia deve ser lida em todo o seu contexto e o
versículo que escolhemos deve dizer aquilo que ele realmente diz e não o que
queremos que ele diga. Deus não vai usar a sua Palavra de forma equivocada e
até mesmo deturpada para nos comunicar algo. Pecamos por nossa ignorância ou
por má fé. Além de contar com a iluminação do Espírito Santo na nossa leitura
da Bíblia, é muito interessante aprendermos uma ciência interpretativa chamada
Hermenêutica, que nos ensina como fazer a correta interpretação de um texto
bíblico.
REFORÇANDO
O APRENDIZADO
1) Busque em dicionários bíblicos ou
na Internet o significado do seguintes termos: alegoria, deísmo (deísta),
ortodoxia, nascimento virginal, eutanásia, pós-neoliberal, ceticismo, paradoxo.
2) O que é a eisegese e qual o seu risco para o estudo da Bíblia?
3) Por que o liberalismo é nocivo ao
estudo das Sagradas Escrituras?
4) Qual a visão neo-ortodoxa da
Bíblia?
5) Quê textos bíblicos você sempre leu
ou escutou alguma pregação de forma espiritualizada e fora do contexto?
6) Quais os benefícios de uma leitura
fundamentalista da Bíblia?
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