A grande redescoberta teológica que
transformou a história do cristianismo e colocou a Igreja do Senhor de volta ao
prumo certo foi a justificação pela graça. A graça que predominava desde o
tempo eterno e que teve a sua expressão maior na obra redentora de Cristo, há
muito havia sido esquecida e trocada por indulgências e ameaças de excomunhão e
purgatório. Desde a Reforma Protestante, então, o homem pôde experimentar outra
vez o quão amoroso e bom é o nosso Deus. Com o passar dos anos, porém, a graça
foi perdendo novamente espaço dentro do movimento que se denomina evangélico.
Se Armínio insistiu há alguns anos na salvação condicional, hoje em dia os meios
de salvação são ainda mais diversos, incluindo desde a guarda do sábado até a
fidelidade nos dízimos.
Muito mais que impor meios substitutivos para
a graça, a teologia atual parece tirar do foco da pregação a própria
necessidade da salvação. É um evangelho sem pecadores e sem cruz, baseado na
ideia de que o homem é um ser sofredor, vítima da sua falta de fé, do sistema e
do diabo, e que precisa do cuidado de Deus para ser feliz e prosperar. Ele
merece essa felicidade, ela é seu direito conquistado por Cristo na cruz. Não
há mais espaço nem necessidade para a graça salvadora de Deus. Como
consequência natural, essa é uma teologia que não salva, não justifica,
não liberta, não sela com o Espírito Santo, não gera filhos para Deus,
não santifica e não produz crentes comprometidos como a Bíblia e os valores do
Reino de Deus.
Um evangelho que não produz novo nascimento
também não promove transformação de vida, não gera nas pessoas um caráter
parecido com o de Cristo nem comportamentos comprometidos com a verdade. Se por
um lado a falta de graça não produz conversão, por outro lado ela resulta em
carnalidade. Muitas pessoas e igrejas quase inteiras tentam manter uma espécie
de cristianismo sem Cristo e sem Bíblia, ou com um Cristo que não salva e uma
Bíblia que só fala aquilo que todos esperam escutar. O resultado está não
somente no tipo de pregação egocêntrica e gananciosa oferecida, mas também no
padrão moral daqueles que se servem desta pregação.
Se a palavra graça significa "dom
gratuito", na teologia sem graça nada é de graça, tudo é negociável:
curas, libertações, exorcismo, a posse das promessas. A barganha com Deus se dá
pelo uso indevido do nome de Jesus e o pagamento de pesados dízimos e ofertas.
Deus não cura de graça, é preciso comprar algum objeto ungido. Deus não abençoa
de graça, é preciso participar de alguma campanha de oração, fazer votos e
provar a fé por meio de dinheiro dado ao pastor, bispo ou apóstolo. Não somente
as bênçãos são negociáveis, mas também os valores. Ninguém parece se importar
em estar ferindo princípios éticos e morais imutáveis e inegociáveis da Palavra
de Deus, como verdade, honestidade, justiça, solidariedade, integridade,
obediência e amor. O que está em vista não é o ser, mas o ter. Há uma
escancarada inversão de valores, uma troca da ortodoxia pelo neoliberalismo
mundano.
Quantas pessoas hoje vão ao supermercado
comprar uma lâmpada incandescente? Provavelmente nenhuma, pois elas saíram de
linha e cederam seu espaço às lâmpadas mais econômicas e duráveis, como as de
LED. Se os donos de supermercados investirem na compra das antigas lâmpadas,
terão prejuízo. O mesmo ocorre em diversas igrejas com relação às pessoas: o
Evangelho da salvação parece não ser "rentável", porque são poucos os
que se preocupam com a sua vida após a morte. Mas muitos se preocupam com um
excelente padrão de vida, com a sua salvação financeira e como fazer para viver
sem problemas. É isso que agora está nas prateleiras e é oferecido de forma
escancarada. Tem-se trocado a graça da salvação pelo preço alto a ser pago por
esse evangelho LED: a condenação eterna. A quantidade de chamados parece
aumentar vertiginosamente, enquanto vê-se diminuir a quantidade de escolhidos.
Com toda essa nova realidade do cristianismo,
criou-se uma expressão paradoxal: a pregação que esvazia igrejas. Se o objetivo
dos líderes é encher de almas as igrejas através da pregação do Evangelho da
cruz, o efeito tem sido justamente o oposto. Isto acontece porque, de acordo
com a lei da oferta e da procura do mercado da fé, ninguém quer pagar ter
mandamentos a seguir, arrependimento e abandono de pecados, compromisso com
Deus e com a sua obra, reconciliação, certeza de lutas e perseguições,
necessidade de viver se modo íntegro. O principal "produto" oferecido
nas igrejas do Evangelho da cruz não pode ser usufruído plenamente no aqui e
agora, mas somente no porvir. As pessoas pagam para ter bênçãos sem limites,
uma vida cristã de facilidades e sem compromisso, que nada lhes cobre e lhes
permita continuar em seus pecados. Elas não querem passar por aflições, mas
exigem a vitória da cruz. Elas não ligam para o ensino da Palavra, o clamor
missionário, a responsabilidade social cristã, mas querem estar onde se
profetiza bênçãos. Se é de graça, não tem valor. Pregar contra essas coisas ou
não satisfazer essas necessidades é de fato correr o risco de esvaziar os
templos.
Para a nossa alegria, o templo pode esvaziar,
mas a Igreja do Senhor jamais perde os seus membros. Eles estão firmemente
alicerçados sobre a Rocha e possuem um amor incondicional pela Palavra de Deus,
ao ponto de rejeitarem qualquer investida mundana e demoníaca contra a sã
doutrina. Eles permanecem quando a palavra de exortação é dura e os convoca ao
arrependimento e à santidade. Quando a tribulação chega, eles se lançam aos pés
do Senhor e confiam nele. Eles não encostam Deus contra a parede exigindo que a
felicidade plena os alcance, mas aprenderam a viver contente em qualquer situação,
a não se abalar, não se entristecer, mas em tudo ao Senhor louvar. Eles não seguem
Jesus porque esperam receber algo dele, mas porque já receberam algo que jamais
mereceram: a salvação. Eles já não vivem mais para si, mas Cristo vive neles, santificando-os,
fazendo-os frutificar.
Esses membros dessa Igreja conhecem, vivem e pregam
a mensagem da cruz, uma mensagem de fé, esperança, salvação, reconciliação, quebrantamento,
arrependimento, transformação, comprometimento, integridade e solidariedade. Os
seus valores estão alicerçados sobre a Palavra de Deus e são inegociáveis. Jamais
negam a fé, jamais abandonam a Deus, mesmo quando se acidentam nas veredas do antigo
homem. Eles enxergam além das suas próprias necessidades, veem o próximo, encontram
o irmão, socorrem os necessitados. Essa é a Igreja nascida na graça e que nela vive
e trabalha. A igreja salva, remida pelo sangue de Cristo, assentada nas regiões
celestiais desde antes da fundação do mundo. Essa é a Igreja que subirá com o Senhor
nas alturas, que não está apegada ao reino deste mundo e aos seus prazeres e riquezas,
mas que anela por uma pátria superior, por um tesouro imperecível já guardado para
ela nos céus. Essa é a noiva do Senhor, que dia e noite clama: Vem, Senhor Jesus.
Mizael Xavier
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