Ele se sentou em um banco de praça
segurando uma rosa em uma das mãos. O seu olhar por alguns instantes contemplou
o vazio intenso do movimento daquele fim de tarde cinzento e úmido. O sol
estava se ponto, riscando o céu de vermelho e laranja do horizonte. Após
flutuar por alguns instantes na linha tênue entre a razão e a inconsciência,
voltou os olhos para a rosa. Mesmo longe da roseira que lhe deu a vida, ela
parecia estar bem, viçosa, radiante e perfumada. Ele a cheirou. Lembrou-se de
20 anos atrás, quando uma enorme coroa de flores feita de rosas vermelhas
enfeitaram o caixão de seu pai, antes de vê-lo abraçando as profundezas da
morte a sete palmos dos viventes.
Quando
o seu pai morreu, ele não estava em casa. O seu pai tivera um infarto e
desmaiou, batendo fortemente a cabeça na mesa de centro. Os médicos disseram
que ele agonizou cerca de meia hora antes de morrer. Onde ele estava naquele
momento? Havia deixado o seu pai já avançado em idade aos cuidados do acaso,
numa noite de sexta-feira, enquanto varria as esquinas em busca de aventuras
soturnas. Ele nunca foi o melhor filho, mas os seus outros irmãos não tinham
condições de cuidar do velho, e como ele tinha acabado de se divorciar e estava
morando só, foi o escolhido. Mas naquele dia ele não estava em casa para tomar
conta do seu pai, para socorrê-lo, e isso martelava-lhe a mente como o ferreiro
em sua bigorna amassando e esticando o aço.
A
última vez que ele viu o seu pai, ele estava deitado em sei leito de morte rumo
ao destino final de todo aquele que é vivo e caminha sobre a terra. Também foi
a última vez que viu qualquer rosto conhecido antes de perder-se pelas ruas e
becos em busca de sanar a dor cortante do remorso em seu coração. De bar em
bar, ele tentava afogar as suas mágoas, como se alguma bebida contivesse o
elixir do esquecimento, a poção mágica do perdão. No fundo, ele desejava
abraçar a morte e encontrar com o seu pai no além vida para, quem sabe, ganhar
o seu perdão. “Eu matei o meu pai”, ele sempre repetia como um mantra ou como a
fale de uma peça teatral que há 20 anos ele tentava decorar sem jamais haver
conseguido. “Eu não estava lá”, não cansava de dizer a si mesmo em seu lamento,
que significava, para ele, a sua sentença de morte em plena vida. Ele jogou a
rosa no chão e pisou-a, amassando as suas delicadas pétalas vermelhas como o
sangue. Ele só queria morrer, mas era covarde demais para acabar com a própria
vida. Haveria de se matar aos poucos
Conforme
o véu da noite cobria a cidade, a escuridão da sua vida aumentava. A vida na
rua cobrava o seu preço: a criminalidade, a solidão, o abandono, o perigo, o
frio. Há 20 anos não via o seu único filho. A primeira coisa que ele perdeu
quando decidiu se entregar ao desatino de esquecer-se de si mesmo e da própria
vida, foi a identidade. Conforme vagava sem destino, esquecia o seu nome, a sua
família, as pessoas que apesar de tudo o amavam, o seu propósito. Quanto mais
longe ia, mais distante o passado ia ficando. Já não tinha mais senso de missão
ou razão de existir na face da terra. Era apenas um verme. Não lembrava mais se
algum dia possuíra qualquer valor, se em algum momento da sua vida a sua
existência teria valido a pena. Ele era um nada cercado de coisa alguma por
todos os lados. Ao menos era esta a certeza que ele carregava no seu coração.
Todas
as vezes que contemplava num espelho a sua face suja e marcada por anos
entregues à sua rotina de autoaniquilamento, não mais se reconhecia. “Qual o
meu nome?”. Nem mesmo documentos havia, uma carta, um bilhete, nada que pudesse
relembrá-lo do ser humano que um dia ele foi. Apenas uma única lembrança, uma única
verdade gritava dentro dele como um louco preso por cadeias flamejantes: “Eu
matei o meu pai. Eu não estava lá”. Sim, ele não estava lá quando o seu pai
morreu, e agora ele próprio também estava ausente de si, mesmo sem perceber a
realidade inquestionável de que há muito tempo morrera para a vida; há muito
tempo, qualquer névoa de esperança esvaiu-se do seu pensar. Não tinha sonhos,
não traçava planos, apenas repetia mecanicamente a rotina da sobrevivência em
meio à selva gélida de concreto. Ele apenas existia como um zumbi em um filme
de terror, em busca de cérebros humanos para devorar e assim poder acabar com o
odor e a dor do verme da morte que corrói a carne sem oferecer descanso.
Ele
levantou-se do banco com dificuldade. Suas juntas enferrujadas pela idade e
maltratadas pelas ruas já não correspondiam bem ao comando do seu cérebro.
Tirou um maço de cigarros amassado do bolso e um isqueiro. Puxou um cigarro e
acendeu-o com as mãos trêmulas. A sua alma era sacudida pelo terremoto de anos
de solidão. Algumas gotas de chuva começaram a cair sobre a sua cabeça. As
chuvas lembravam lágrimas. Ele gostava quando chovia. Não se importava em se
molhar. Ao menos podia aproveitar o momento da chuva para chorar sem que
ninguém notasse as suas lágrimas escorrendo como um rio caudaloso pela sua
face, lágrimas amargas que se misturavam à chuva que caía e eram levadas para
bem longe. A chuva ao menos fazia germinar da terra a planta para dar frutos,
mas as suas lágrimas possuíam algum sentido? Elas poderiam trazer de volta o
seu pai? Elas poderiam devolver a paz ao seu coração? Eram apenas lágrimas
tristes, remendos de um passado que insistia em abraçar como um parasita o seu
presente, destruindo o seu futuro.
Ele
atravessou a rua. Do outro lado havia uma marquise onde ele, na companhia de
outros mendigos e moradores de rua, dormia sobre um papelão qualquer, coberto
com um velho cobertor que levava em uma mochila surrada que encontrara no lixo.
Naquele dia ele não havia comido nada e sem nada comer iria tentar dormir. Antes
de fechar os olhos para dormir, ele se lembrava de Deus e pedia que aquela
fosse a sua última noite, que o destino armado até os dentes viesse ao seu
encontro e selasse de vez a sua sina, casando-o para sempre com a morte, a
mesma que levou o seu pai e que todos os dias o persegue implacável. Este era o
seu único desejo, o seu íntimo anseio: abraçar a morte e o esquecimento. Um dia
ele ouvira alguém falar que os mortos não contam histórias. Morrer era a única
forma de esquecer as suas histórias, a sua existência, a sua dor.
Após
alguns cigarros e uma garrafa de vodka barata, ele finalmente adormeceu, seu
único momento de paz, quebrado apenas pelos pesadelos que não o deixavam
esquecer jamais quem ele era. Em todos eles a figura do seu pai estava
presente. Ele geralmente sonhava com o seu pai caindo num profundo abismo
enquanto chamava pelo seu nome. O seu pai caía, mas ele nunca aparecia para
socorrê-lo. Quando acordava, às vezes no meio da madrugada assustado, ele
recordava do sonho e começava a chorar. Algo que ele tentava sempre lembrar era
o seu nome no sonho, mas não consegui lembrar enquanto acordado. A sua vida era
um livro em branco, esperando ser preenchido por uma história jamais contada. Ele
já tinha a sua história, mas se pudesse, rasgaria todas as páginas do seu
passado para não sofrê-las nunca mais.
Ele
não sabia, mas aquela noite seria uma noite diferente. Por volta da meia-noite,
uma viatura da polícia estacionou bem em frente à marquise onde ele estava
dormindo. Ao verem três policiais descendo da viatura, os outros que estavam
ali dormindo, se drogando ou bebendo correram o mais depressa que lhes foi
possível. Como ele estava muito bêbado e sonolento demais para perceber isso,
permaneceu deitado e roncava. Era um homem indefeso, presa fácil nas mãos de
qualquer predador. Os policiais se aproximaram com pistolas e fuzis em punho. Descobriram-no
e o viraram de rosto para cima. O capitão da equipe observou-o atentamente e
afirmou: “É ele mesmo. Podem ir buscar o rapaz na viatura”. O policial foi
rapidamente e voltou trazendo um rapaz que ficara esperando dentro da viatura
até terem certeza de que tudo estava seguro. O rapaz se aproximou e se abaixou
para olhá-lo melhor e também poder identificá-lo. Era ele mesmo.
O
rapaz sacudiu-o na tentativa de despertá-lo. Após nova tentativa, ele acordou
assustado. Ao ver os policiais armados, tentou fugir, mas foi rapidamente
alcançado e agarrado, chegando a cair ao chão enquanto os policiais tentavam contê-lo. Ele gritava: “Me soltem, eu não fiz nada!”, mas ninguém lhe dava
ouvidos. Foi quando o rapaz se aproximou e disse:
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