1
INTRODUÇÃO
Não
é preciso voltar os olhos para os tempos idos do Iluminismo ou do Modernismo
para compreender as consequências negativas causadas pelo liberalismo à
teologia e à vida da Igreja de Cristo. Tais consequências não dizem respeito
apenas ao modo de enxergar a Bíblia e o Deus da Bíblia, mas também a forma como
certos grupos cristãos passaram a viver a sua fé na prática cotidiana. Se o
liberalismo teológico enxerga Deus a partir de pressupostos meramente
históricos e filosóficos, tira dele a sua essência divina e aproxima-o do ideal
científico, no qual chega a negar-se a sua existência. Se Deus é um ser tão
somente imanente e coexiste nos seres e nas coisas, deixa de ser transcendente,
moral e relacional. A ideia da Queda é abolida e, como desejam os cientistas
sociais e da mente, o pecado inexiste.
O
liberalismo teológico extrapolou questões meramente teológicas sobre a
autenticidade da Bíblia e a existência de Deus, como apregoavam os deístas. Ele
infiltrou-se mesmo nas confissões ortodoxas, que creem na existência de Deus,
na inspiração das Escrituras e na divindade de Cristo, bem como na
historicidade e na veracidade dos milagres Bíblicos, do nascimento virginal de
Jesus, na sua ressurreição dentre os mortos, na sua volta gloriosa para o
resgate da sua Igreja e o julgamento final. Tal liberalismo, reconhecendo as
Escrituras, negam-na através de suas práticas antibíblicas, que não se resumem
à criação de heresias – como existem nas Testemunhas de Jeová, no Mormonismo ou
no Catolicismo Romano – mas que se estendem à moralidade e à ética cristãs.
Temas polêmicos como o aborto, a eutanásia, a pena de morte e o homossexualismo
são defendidos por tal teologia e por aqueles que dela se servem, segundo o que
lhes for conveniente.
A
tentativa de tornar a fé um produto aceitável em um mundo dominado pela ciência
e pela tecnologia, afastou e ainda tem afastado os cristãos da genuinidade da
pregação evangélica, aceitando-se abrir mão da doutrina correta para abraçar
uma nova forma de pensar Deus e a sua Palavra. O problema central parece ser a
iluminação da Igreja pelo mundo, com suas crenças e valores, quando deveria ser
o contrário. Neste ponto, lembrar do fundamentalismo teológico e muitos dos
seus pontos obscuros é compreender a tentativa de alguns grupos religiosos de
manter a crença correta em meio às influências modernistas perniciosas, que
tendem a abrir mão do que é ortodoxo para lançar-se a todo vento de doutrina.
Era necessária, então, uma nova ortodoxia, que seria, na verdade, uma volta às
origens da fé genuinamente bíblica. Essa nova ortodoxia, porém, não seria
suficiente para barrar o avanço das heresias e da apostasia, mas corroboraria
com ambas.
2
O PROBLEMA DA IGREJA ATUAL
Para
Augustus Nicodemus (2012, p. 80), o Liberalismo
Teológico é a maior causa para a apostasia da igreja, uma vez que ele adota
conceitos contrários à Palavra de Deus. A presença das heresias na Igreja
cristã vem desde os tempos apostólicos, tendo em vista que os próprios
apóstolos e escritores do Novo Testamento já se viam obrigados a combater
pensamentos e práticas contrários à Verdade, que se infiltravam nas comunidades
eclesiais, como o gnosticismo e a questão dos judaizantes (p. ex., o livro de
Gálatas). Tais heresias não somente pervertiam o Evangelho de Cristo, como
afastavam dele as pessoas. Alguns crentes chegavam a apostatar da fé para abraçar
uma nova maneira de pensar Deus e a sua Palavra (cf. 2 Tessalonicenses 2:9-11;
1 Timóteo 4:1; 6:20,21; Hebreus 3:12,13). Nicodemus (idem) cita alguns motivos
externos que levavam à heresia e à apostasia: “amor ao dinheiro, orgulho,
problemas morais não resolvidos, vaidade intelectual, falta de coragem para
assumir a verdade e desejo de novidades”. Além disso, a falta de um coração
verdadeiramente regenerado configura-se, talvez, o principal fator que leva
alguém a apostatar da fé.
Entra-se,
aqui, numa questão importante: apostata-se da fé quando se renega a verdade
Bíblia e se abandona a Igreja, ou é possível permanecer de posse da Bíblia e
dentro da Igreja e ainda assim ser um apóstata? Esta é uma questão controversa
que envolve o liberalismo teológico e a pregação de doutrinas contrárias à
Bíblia, sem, no entanto, negá-la. Existem muitos pregadores apostatando da fé,
pregando-a. isto significa caminhar por duas vertentes: dizer aquilo que a
Palavra de Deus não diz como se fosse uma verdade revelada; ou distorcer aquilo
que a Palavra de Deus diz para suprir interesses pessoais. Quando alguém diz,
por exemplo, que o cristão só será abençoado se for fiel nos dízimos, está
distorcendo o sentido do texto de Malaquias 3:10-12, ao passo que acrescenta
uma doutrina estranha á Bíblia. Tal prática está maciçamente presente nas
igrejas atuais, acima de tudo aquelas ligadas ao movimento neopentecostal. A
criação de igrejas homoafetivas, onde a Bíblia é tida como Palavra de Deus e
pregada, também é um exemplo de apostasia em que permanece a Bíblia, mas de
forma distorcida.
Em um livro
publicado no Brasil pela Editora Fiel (2012), Paul Washer traz ao público dez
acusações contra a Igreja Moderna. A primeira diz respeito à negação da
suficiência da Escritura, algo já praticado há séculos pelo Catolicismo Romano,
que considera como igualmente inspirada a Tradição e o Magistério da Igreja. Em
algumas denominações protestantes, são acrescidas novas revelações à Bíblia de
acordo com o bel-prazer de pretensos profetas. A segunda é uma ignorância a
respeito de Deus. Os crentes não somente conhecem pouco a respeito do Deus que
creem, como também atribuem palavras, pensamentos e ações a Deus de forma
indevida, distante da realidade bíblica. A quarta acusação é o fracasso em abordar
o mal do homem, tratando o pecado de maneira superficial, como medo de falar
aos homens da sua impiedade. A quarta é a ignorância quanto ao evangelho de
Cristo, que, nas igrejas atuais, nem sempre aponta para a obra de Cristo na
cruz, mas se contenta com temas periféricos, como prosperidade e vitória
terrena. Como consequência, a quinta acusação é um convite antibíblico ao
evangelho, que não traz conversão sincera do pecador nem transforma a sua vida
moral. A ênfase atual não está naquilo que Deus quer para o homem em termos
eternos, mas aquilo que o homem pode angariar de Deus em termos terrenos.
A
sexta acusação trazida por Washer é uma ignorância quanto à natureza da igreja.
A igreja é mais compreendida de um ponto de vista mundano e utilitarista do que
sob a óptica bíblica de instituição divina santa e imaculada. A sétima é uma
falta de disciplina eclesiástica amorosa e compassiva. A carnalidade faz parte
da vida de muitos pastores e a disciplina nem sempre envolve o amor e a
misericórdia. A oitava acusação fala sobre um silêncio a respeito da separação
ou santidade. Nem sempre o que se prega a respeito de santidade tem a ver com o
que está escrito na Bíblia. A nona acusação é a substituição do ensino bíblico
sobre família por psicologia e sociologia. O aconselhamento pastoral é
substituído pela terapia grupal. A décima acusação mostra pastores mal nutridos
na Palavra de Deus, que não leem nem estudam a Bíblia. Muitos têm grandes
resistências quanto ao estudo teológico em seminários.
Todas
essas acusações refletem a influência liberalista na Igreja de Cristo. É
necessário lembrar que o liberalismo teológico é muito mais que teorias
errôneas acerca da Bíblia e de Deus, mas uma prática de vida que se inicia
nessas concepções equivocadas e transporta-se para as comunidades
eclesiásticas. A falta de preocupação com o estudo e o ensino das Escrituras
pode partir da compreensão de que elas não são suficientes para a fé cristã e
parecem ser facilmente substituídas por outras fontes. A falta de moralidade
pode estar ligada à relativização do pecado e ao descomprometimento com o
Evangelho puro e simples de Jesus Cristo. Lewis (2009, p. 121) escreve que “As
pessoas normalmente encaram a moral cristã como uma espécie de barganha, na
qual Deus diz: ‘Se você seguir uma série de regras, vou recompensá-lo; se não
seguir, farei o contrário’”. A barganha é uma das marcas do neoliberalismo,
pensamento filosófico-religioso que rege o movimento neopentecostal.
3
A NEO-ORTODOXIA
O
liberalismo teológico, em sua roupagem moderna, vem configurando-se como estilo
de vida e de pensamento da Igreja desde as suas raízes: a ideia da morte de
Deus apregoada pelo filósofo Friedrich Nietzche. Conforme afirma Geisler (2012,
p. 124): “uma vez que eles declaram que Deus está morto, então o resto do
pós-modernismo é o resultado lógico”, o que envolve a quebra de questões
ortodoxas como a lei moral absoluta,
o significado absoluto e a verdade absoluta, que leva à morte de
todas as outras áreas do pensamento e da vida humana, incluindo a teologia. Se
Deus está morto, instaura-se o ateísmo, o relativismo, o pluralismo, o
convencionalismo, o anti-fundacionismo, o desconstrucionismo e o subjetivismo.
Tal pós-modernismo tem trazido para a Igreja uma nova maneira de enxergar Deus
e de vivenciar a sua fé, através de uma teologia da pós. Ainda conforme Geisler
(idem, p. 124), o pós-modernismo tem se chamado na Teologia de pós-protestante,
pós-ortodoxo, pós-denominacional, pós-doutrinário, pós-individual,
pós-funcional, pós-credo, pós-racional, pós-absoluto, configurando-se, na
verdade, um “anti” tudo aquilo que conhecemos como Palavra de Deus e a correta
ortodoxia bíblica.
A
neo-ortodoxia (nova ortodoxia) vinha resgatar o lugar de Deus e da Bíblia na
vida da Igreja, colocando freios ao idealismo pós-moderno e liberal, bem como
pós-neoliberal, para trazer a cristandade de volta à forma correta de entender
e viver a sua fé. Os neo-ortodoxos, segundo Nicodemus (op. cit., p. 87),
levantaram-se contra a rigidez e o ceticismo do liberalismo, que não deixava a
voz de Deus ser ouvida através da Bíblia. Os neo-ortodoxos, porém, mantêm a
visão equivocada de que a Escritura está repleta de erros e contradições,
afirmando que, ainda assim, Deus fala hoje. Segundo eles, “O maior de todos os
milagres é exatamente que Deus nos fala através de palavras imperfeitas,
erradas, imprecisas e equivocadas desse livro” (NICODEMUS, idem). Sem descartar
a posição dos liberais, a neo-ortodoxia desejava manter a relevância bíblica,
criando um paradoxo teológico insustentável à luz da ortodoxia.
De
acordo com o blog novomanifestoreformado.blogspot.com.br (2013):
O
Século XX foi marcado por uma série de inovações na teologia. Desde o advento
da neo-ortodoxia, com a publicação da Carta aos Romanos de Karl Barth em 1919 –
obra clássica que veio contestar a teologia liberal sem, contudo, promover um
retorno à ortodoxia tradicional – passando por Rudolf Bultmann e seu programa
de demitologização (um autêntico retorno ao ceticismo dos liberais), Paul
Tillich, Emil Brunner, Jürgen Moltmann e Wolfhart Pannenberg dentre outros, os
seminários teológicos experimentaram uma miscelânea de ideias e conceitos a
respeito da Bíblia e de Deus, influenciando gerações de pastores, inclusive
muitos dos que hoje ocupam o púlpito e a direção de certas igrejas.
Para
os neo-ortodoxos, a Bíblia não é a Palavra de Deus inspirada, mas somente Jesus
Cristo. Ela pode se tornar a Palavra de Deus, caso Jesus fale com o leitor e o
conduza a Deus. De acordo com o pastor Marcos Granconato (2009): “Não há
nenhuma igreja específica ligada à neo-ortodoxia. Trata-se de uma doutrina que
está disseminada entre pastores das mais diversas denominações, especialmente
as tradicionais. Porém, como seu ensino é sutil (afinal, quem questionaria a
afirmação de que Cristo é a Palavra de Deus? João 1.1-14 não ensina
isso?), muitas vezes sua ameaça deixa de ser percebida”.
Segundo
o site teologiacontemporanea.wordpress.com (2009), o tema mais debatido da
neo-ortodoxia é o conceito de revelação. De acordo com o site:
A
revelação, segundo Barth, é uma perpendicular que vem de cima, e que por isso
não pode se comparar com as melhores intuições humanas. A revelação é um evento
no qual Deus toma a iniciativa. Também é dito que a revelação não pode
comparar-se com a Bíblia, pois é superior a ela. A Bíblia e suas afirmações são
testemunhas, são sinais indicadores da revelação, mas não é a revelação em si.
A Escritura não é a Palavra de Deus, e nem as afirmações da Escritura são
revelação. Segundo Barth, comparar a Bíblia com a Palavra de Deus é objetivar e
materializar a revelação.
Tal
crença dá ensejo não somente ao descrédito do conteúdo bíblico, como também a
novas revelações ou a adoção de outras fontes de revelação divina, como a
Tradição e o Magistério do Catolicismo Romano. Como ocorre com o liberalismo
teológico, a neo-ortodoxia traz consequências tanto no campo doutrinário, como
na realidade prática da fé, a forma como as pessoas vivem aquilo que acreditam.
É natural que crenças erradas levam a práticas igualmente erradas. A descrença na inerrância da Bíblia promovida
tanto pelo liberalismo quanto pela neo-ortodoxia, permitem a formulação de
crenças baseadas em conceitos mundanos sobre Deus, sobre bondade e justiça,
baseados naquilo que é politicamente correto, mesmo em conflito com as
Escrituras. Tal postura reflete nas pregações evangélicas atuais, onde novas
revelações são trazidas e introduzidas nas igrejas, apresentando um
cristianismo genérico que em tudo se distancia daquilo que está contido no que
a ortodoxia chama acertadamente de Palavra de Deus inspirada: a Bíblia, Antigo
e Novo Testamento.
Já
que a Bíblia não é inerrante, aceita-se o pluralismo de crenças, onde todos os
caminhos levam a Deus e Deus está presente em todas as religiões, pessoas e
coisas. Tanto a pregação liberal quanto a neo-ortodoxa, retiram da fé cristã o
seu principal sustentáculo: a cruz de Cristo. A cruz é para onde todas as
letras das Escrituras convergem. Tudo o que aconteceu antes e depois da morte
vicária de Cristo têm ali a sua razão de existir. O que acontece quando se tira
o milagre da cruz da vida cristã e de toda a humanidade? O que ocorre quando se
nega a morte e a ressurreição de Cristo como um ato providencial de Deus para
permitir que todo o que crê seja salvo? Além de se negar a realidade da Queda,
nega-se a necessidade de um salvador e a existência da própria Igreja. E o que
dizer de uma igreja – se é que se pode chamar assim – que não crê na veracidade
dos milagres bíblicos nem na autenticidade da paixão de Cristo? Que
consequências morais, espirituais e eternas tal igreja pode experimentar?
Um
dos pontos-chave da teologia liberal e neo-ortodoxa é permitir que a fé se
expanda àqueles que não conseguem crer no extraordinário, o que remonta ao
racionalismo científico. Dessa forma, abre-se mão da crença no sobrenatural e
nos milagres para permitir que a razão conceba Deus. Sem dúvida, de acordo com
Craig (2012, p. 237), “um dos principais impedimentos para muitas pessoas se
tornarem cristãos hoje em dia é que o cristianismo é uma religião de milagres”.
Ele ainda afirma: “O problema é que esse tipo de fato miraculoso parece
pertencer a uma cosmovisão estranha ao homem moderno – uma cosmovisão
pré-científica, supersticiosa, que combina com a Idade Antiga e Média” (idem).
As pessoas necessitam crer naquilo que podem comprovar de maneira racional e
científica, sem prejuízos à sua inteligência. Figuras como Bultmann reduziram o
cristianismo a uma forma de ateísmo onde Deus está presente, mas ao mesmo tempo
não está, negando ao homem caído a chance da regeneração e a possibilidade da
imortalidade.
Por
outro lado, o fenômeno religioso brasileiro atual alavancado pelo
neopentecostalismo, faz uso demasiado e irrestrito da crença nos milagres e nos
sinais extraordinários. A sua fé triunfalista insiste no sobrenatural, no poder
da fé e na influência sempre constante de Satanás na vida do crente. Temas como
a Queda e as suas consequências à vida humana, a mensagem salvadora da cruz e a
escatologia são deixados de lado em nome de um cristianismo voltado para os
bens terrenos, a felicidade plena e a prosperidade financeira. Deus é
apresentado como o Deus de promessas (materiais) e de milagres (financeiros).
Jesus é mostrado como aquele que morreu na cruz para nos dar juntamente com Ele
todas as coisas (vitória e prosperidade). A ética e a moralidade cristã dão
lugar a práticas supersticiosas (como fogueiras santas e lenços ungidos com o
suor do líder religioso), os movimentos de cura e libertação, onde o exorcismo
é o caminho para a libertação do fiel de problemas puramente morais, que
deveriam ser resolvidos com arrependimento, conversão e santidade de vida.
4
O DESPREZO PELO ESTUDO DA BÍBLIA
Todas essas
questões refletem drasticamente na forma como os crentes encaram o estudo da
Palavra de Deus. Não é de hoje que os pastores têm visto minguar a frequência
dos crentes nos cultos de doutrina e na escola bíblica dominical. Este é um
fenômeno que atinge a todas as igrejas evangélicas e que tem preocupado muitos
líderes comprometidos com o ensino da Palavra de Deus. Por outro lado, outros
tipos de cultos e eventos das igrejas têm recebido um número cada vez maior de
crentes, independente do dia da semana e do horário em que são realizados. Em
sua maioria, são cultos ligados a temas como cura, libertação, vitória e
prosperidade financeira. As igrejas que investem nesse tipo de pregação estão
sempre lotadas. Essas mesmas igrejas também veem o número de fies reduzir
drasticamente nos dias de culto de doutrina, quando eles existem. Essa situação
nada mais é do que o reflexo dessa nova teologia, dessa nova forma de pensar
Deus e o seu agir no mundo.
Pode-se pensar em
algumas prováveis razões ou justificativas para essa evasão do ensino bíblico.
4.1
Falta de orientação
Em primeiro lugar
está a falta de orientação dos pastores, tanto pelo fato de não serem
orientados por seus líderes maiores a estudarem com afinco as Escrituras,
quanto o fato de eles mesmos não orientarem os seus fiéis a estudá-las. Este
problema deve ser encarado sob duas ópticas:
·
Existe de fato
uma má vontade que é produto da má fé. Isto é: tais líderes não desejam que
seus fiéis estudem a Bíblia para poderem manter o poder sobre eles e a sua fé.
Se as pessoas começassem a ler e entender as Escrituras Sagradas, poderiam
passar a questionar as doutrinas da sua denominação e a não se conformar mais
com certas pregações. Desta forma, muitas denominações não realizam culto de
doutrina, limitando-se ao cardápio teológico oferecido pelo neopentecostalismo
de cura, libertação e prosperidade financeira.
·
Outro fato é a
tradição pentecostal, ainda mais acentuada na teologia neopentecostal, de
dependência total do Espírito Santo, ao ponto de não valorizar o estudo da
Bíblia, alegando ser esta uma forma de impedir que o Espírito Santo fale a aja.
Dentro desta óptica, o estudo da Palavra de Deus é tanto incorreto como
desnecessário, uma vez que o Espírito é quem inspira no crente o que ele
precisa saber e falar no momento exato, interpretando de maneira equivocada o
texto de Mateus 10:19,20.
4.2
Despreparo
Quando
o problema não é a falta de orientação, o despreparo está presente. O ensino
correto e sadio da Bíblia depende da preparação de pessoas para realizá-lo. A
boa vontade em fazer algo pode ser parte dos ingredientes, mas não é nem o
único nem o principal. Ela precisa estar aliada à preparação daqueles que irão
ministrar à Igreja o estudo da Bíblia. Essa preparação ocorre em dois níveis. O
primeiro é o espiritual, isto é, quem se prontifica em ensinar a Palavra de
Deus deve fazê-lo com a autoridade de quem acredita na Bíblia e a pratica. Isto
não significa que o professor de ensino bíblico deva ser perfeito, mas que
precisa ser alguém comprometido com a fé evangélica, com os valores do Reino de
Deus. Logo, ele precisa ensinar primeiramente para si, tornar real na sua
própria vida aquilo que aprendeu e que pretende ensinar. É esta a sensível
diferença entre o ensino dos doutores da lei e do Senhor Jesus (Mt 7:28,29).
Muitos pregadores e mestres nas igrejas não ensinam corretamente porque não
possuem autoridade. Pode ser que um dos grandes motivos para a pouca frequência
nos cultos de doutrina e na EBD esteja na observação da vida espiritual dos
professores por parte da Igreja, quando percebem que aqueles que lhes ensinam
não praticam o que eles mesmos ensinam.
O
segundo nível da preparação é a técnica. Como foi dito, boa vontade não é o
suficiente. Pode-se afirmar, também, que santidade também não basta, embora
seja o fator decisivo. A Igreja precisa investir na capacitação da sua
liderança naquilo que diz respeito ao ensino das Sagradas Escrituras. Numa
reunião de professores de EBD de certa denominação de linha pentecostal, foi
sugerido ao pastor e líder que naquele ano se investisse na capacitação técnica
dos professores, por meio de cursos, palestras e participação em congressos
ligados ao ensino da Bíblia na Igreja. A ideia foi imediatamente rechaçada pelo
líder, que afirmou que os professores possuíam o Espírito Santo e a Bíblia e
que isso era suficiente. De fato, nenhuma técnica de ensino poderá substituir e
atuação poderosa do Espírito Santo, mas isso não significa que o crente não
deva aprender “como ensinar”, como utilizar o conhecimento dado por Deus e
aplicá-lo de maneira eficaz.
Esse
pensamento distorcido da realidade tem esvaziado as EBDs, uma vez que o nível
de ensino oferecido não é de qualidade, mas repetitivo, sem atrativo algum e
sem consistência. Muitas igrejas passam anos ensinando as mesmas coisas, os
mesmos temas, invariavelmente. Aquilo que o aluno aprendeu hoje, aprenderá no
próximo mês com palavras diferentes. O ensino na Igreja nem sempre acompanha o
nível de desenvolvimento espiritual e intelectual dos fiéis, oferecendo àquele
que possui vinte anos de Evangelho o mesmo conteúdo que oferece a um novo
convertido. Líderes, pregadores e professores precisam investir constantemente
em atualização, novas técnicas de ensino, treinamento. Tudo isso não significa
desprezo pela atuação do Espírito Santo, muito pelo contrário: é um respeito à
excelência do estudo e do ensino do Livro que Ele inspirou.
4.3
Preconceito
A
falta de amor pelo estudo da Palavra de Deus também está ligada ao preconceito
que muitos cristãos irracionalmente nutrem contra o ensino teológico. Para
muitos, o ensino da teologia em seminários endurece o coração do crente, apaga
a luz do Espírito no seu coração e produz nela uma fé totalmente racional e
desprovida de intimidade com Deus. de fato, muitos cristãos fracos na fé não
conseguem aliar o estudo sistemático das Escrituras a uma fé viva, quando na
verdade um fator depende do outro. A espiritualidade não pode ser desprovida de
conhecimento bíblico nem este pode estar desvinculado da uma vida
espiritualmente ativa, com oração, leitura devocional da Bíblia, comunhão com
os irmãos e santidade de vida. Mesmo fora dos seminários, nos cultos e na EBD,
o preconceito ainda existe, o medo de se tornar um crente meramente racional,
desprovido de emoção e experiência mística com Deus.
4.4
A preferência pelo testemunho pessoal
Tem-se ouvido muitas pregações que afirmam
que para pregar o Evangelho não é necessário ser um estudioso da Bíblia ou
fazer um curso de teologia. Essas pregações estimulam os fiéis a pregarem
através do seu testemunho, contar o que Jesus fez na sua vida. E insistem que o
testemunho vale mais do que muita teologia. Existem algumas mensagens perigosas
por trás disso. A primeira é a desvalorização do próprio Evangelho: ele pode
ser facilmente trocado pelo testemunho pessoal de alguém, que, diga-se de
passagem, nem sempre condiz com o Evangelho. A segunda é que o teólogo não
possui testemunho. Para muitas pessoas, ou o crente tem muito conhecimento ou
tem testemunho; os dois não caminham juntos, o que é um julgamento
preconceituoso e equivocado. A terceira mensagem afirma que o ensino teológico
não é tão importante quanto parece, que é possível construir uma teologia
própria baseada nas próprias experiências pessoais.
A situação degradante da igreja evangélica,
puxada pelo carrossel do neopentecostalismo, mostra-nos o resultado de uma
pregação sem teologia, de um testemunho sem base bíblica, de uma religiosidade
baseada apenas na experiência dos outros. Não é preciso ser cristão para ter
testemunho de cura e mudança de comportamento. Todas as religiões possuem essas
coisas. Mas é preciso conhecimento bíblico da doutrina da salvação para levar
um pecador à verdadeira conversão, não aquela que se emociona com o testemunho
do pregador e quer ser igual, mas aquela que é convencida do pecado pelo
Espírito Santo e escolhe viver para Deus. O apóstolo Paulo não pregava a si
mesmo, embora testemunhasse das maravilhas que o Senhor operava na sua vida.
Ele pregava o Evangelho da graça, fundamentado nas Sagradas Escrituras, que citava
abundantemente. O testemunho precisa caminhar ao lado da Bíblia e para isso é
preciso compreendê-la por meio da sua leitura e estudo.
4.5 A Teologia da
Prosperidade
O liberalismo teológico e o
neopentecostalismo implantaram na mentalidade evangélica a compreensão de que o
objetivo claro da Bíblia é satisfazer às necessidades particulares do crente,
de modo que as pessoas que recorrem às igrejas que pregam e vivem esse tipo de
ensino estão em busca de resolver os seus problemas pessoais e obter as
vantagens oferecidas por uma fé triunfalista e vazia. A teoria vigente na
Teologia da Prosperidade é a de que o crente não precisa esperar chegar ao
Paraíso para desfrutar de todos os direitos prometidos por Deus na sua Palavra
e adquiridos por Cristo na sua expiação. Ao contrário, ele pode desfrutar hoje
mesmo de todos os benefícios de uma vida no céu, onde não existe doença e
pobreza, onde só há saúde e prosperidade. Não é feito, no entanto, alusão
alguma ao fato de que no céu não existe dinheiro ou um corpo físico para ter ou
não saúde, portanto todas as bênçãos desfrutadas são espirituais. Mas a falta
de formação teológica dos pregadores da prosperidade e a sua cegueira
espiritual justificam essa gafe.
Hagin, um dos grandes gurus desse
tipo de teologia, afirma: “Uma razão porque nós, cristãos, vivemos em descrença
e nossa fé tem sido obstruída, é a falta do conhecimento da redenção e dos
nossos direitos na redenção, e essa falta de conhecimento é a maior inimiga da
fé.” (in PIERATT, 1993, p. 66). Ele e
tantos outros pregadores da prosperidade insistem em afirmar que os crentes têm
direitos conquistados e outorgados por Cristo, direitos à saúde física e
prosperidade financeira, que são efeitos da libertação efetuada por Cristo na
cruz. Se todas estas coisas eram consequências do pecado e Cristo morreu para
refazer tudo o que pelo pecado fora desfeito, então elas são um direito que a
igreja deve gozar aqui e agora. Se os crentes estão em situação difícil, é
porque lhes falta o conhecimento dessas coisas. A falta de conhecimento dos
direitos do cristão é que faz com que tantos permaneçam na miséria e adoeçam.
Esse tipo de ensino está presente de
forma aberta nas igrejas da prosperidade e tem penetrado de forma embrionária
em denominações consideradas históricas. A preferência geral é por cultos de
cura e libertação, por pregações triunfalistas e antropocêntricas, levando os
cultos de doutrina e a EBD a um estado crítico de quase inexistência. O
conhecimento incentivado atualmente ao crente é o necessário para que ele
adquira aquilo que lhe pertence, que lhe foi dado por Cristo na cruz. A partir
do momento em que o crente “toma posse” dos seus direitos e crê que Deus fará
tudo conforme o prometido, ele deve passar a “exigir” a sua bênção. Comentando
João 14:13, Soares (2009, p. 17) traz ao leitor uma “grande revelação”: a
palavra “pedirdes”, nesse texto, foi mal traduzida. O correto seria traduzi-la
como “determinardes”. Segundo ele, o verbo pedir é sozo no original grego e tem o sentido de determinar, exigir,
mandar. Por isso, não é preciso pedir nada a Deus, mas apenas exigir que Ele
manifeste aquilo que já nos foi dado segundo a sua Palavra.
4.6 Individualismo descompromissado
Toda essa teologia triunfalista e
desprovida de apoio escriturístico, tem criado uma nova forma de pensar, sentir
e viver o Evangelho. Esse novo formato gera crentes que não compreendem a razão
do seu chamado ou sequer se entendem como pessoas salvas, com uma nova
natureza, um novo padrão de vida e uma missão a cumprir. O neoliberalismo
teológico fomentou um individualismo que impede que aqueles que se “convertem”
se sintam de alguma forma comprometidos com a fé que abraçaram. Esse problema
se inicia nas pregações que oferecem ao pecador a oportunidade de vencer as
suas dores e as suas crises financeiras por meio do poder que há no Nome de
Jesus, alcançando pessoas desesperadas, que procuram soluções rápidas e fáceis
para vencer suas agruras. A solução apresentada na pregação neopentecostal é um
Deus que está obstinado em abençoar o “pobre pecador”, a curar todas as feridas
da sua alma, a satisfazer todos os seus desejos e vontades, a cobri-lhe de ricas
bênçãos materiais. Desde cedo, os fiéis desse tipo de teologia aprendem que o
seu objetivo de vida é pedir e a obrigação de Deus, é dar.
Essa pregação tem exercido
influência tal na cristandade, que mesmo as igrejas tradicionais têm sofrido
com a falta de frequência dos seus membros em cultos de doutrina e na EBD. A
razão é que as pessoas de fato estão em busca daquilo que massageie o seu ego e
supra as suas expectativas. Não há tempo para o aprendizado sistemático, apenas
para a apresentação de soluções rápidas para os seus problemas. O que se espera
ouvir são pregações triunfalistas que falem das promessas de Deus, que preguem
a vitória do crente aqui e agora, que deem às pessoas uma razão para adorar a
Deus. Isto é: Deus só merece a atenção dos seus filhos enquanto os estiver
abençoando, enchendo seus corações de promessas maravilhosas. Uma das
consequencias naturais desse tipo de fé é a falta de compromisso com o
Evangelho, tanto na observação dos seus mandamentos quanto na prática das boas
obras e no envolvimento ativo na obra do Senhor. As igrejas estão lotadas de convertidos
às bênçãos de Deus e vazias de convertidos ao Deus das bênçãos. Uma conclusão sincera
dessa situação afirmaria que a razão pelo desprezo do estudo da Bíblia é a falta
de conversão.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com
o desenvolvimento histórico do liberalismo teológico e a ascensão da
neo-ortodoxia e a influência exercida por ambas no pensamento e na prática
cristãs, fica difícil delimitar as bases do pensamento evangélico atual. O
neoliberalismo e a teologia neopentecostal parecem beber de ambas as fontes,
reinventando a fé cristã e as maneiras de interpretá-la e expressá-la. A
neo-ortodoxia não ofereceu uma saída correta que levasse a Igreja a uma práxis
baseada nos principais fundamentos da fé cristã. Antes, criou uma nova
apostasia em cima daquilo que o liberalismo já vinha ensinando. Alguns pontos
mudaram, mas a essência permaneceu inalterada: o Deus do cristianismo reformado
está morto. Ele não é mais que um relojoeiro cego, conforme apregoam ateus,
como Richard Dawkins.
Ainda
que a crença em Deus permaneça e a Bíblia encontre-se no seio do cristianismo
como uma bússola para a fé e a prática da cristandade, doutrinariamente, os
cristãos parecem viver um período de Idade das Trevas doutrinárias. Tanto
algumas denominações históricas quanto as denominações ligadas ao movimento
neopentecostal cedem a modismos, praticam o sincretismo religioso, curvam-se
diante do racionalismo, abraçam o pós-modernismo, abrem espaços para que as
ciências sociais e da mente tomem o lugar da Bíblia nas pregações e nos
aconselhamentos. Por um lado existe a exacerbação no uso dos milagres, por
outro o desprezo pelos dons espirituais e a demitologização muito difundida por
Bultmann. A Igreja moderna urge uma volta ao cristianismo primitivo, ao exemplo
de fé e de prática presente na era apostólica e na Igreja do primeiro século, a
uma fé ortodoxa e genuinamente fundamentada na Bíblia, sendo fundamentalista
sem ser tradicionalista.
Para
frear o avanço liberal (e neoliberal) e neo-ortodoxo que avassala as igrejas, é
necessário o regresso ao ortodoxismo, devolvendo à Bíblia o seu lugar de
proeminência entre a cristandade. Um dos ideais para este regresso é pensar o
conservadorismo cristão como algo não prejudicial, mas salutar, onde se
preserva não somente os fundamentos doutrinários da fé, como também os valores
morais e espirituais que sempre permearam a vivência cristã. Como já foi dito,
crenças erradas levam a práticas igualmente erradas. O conservadorismo nada
mais é que um apelo à prática saudável do Evangelho, num contraponto á teologia
liberal que tira o pecado de cena e instaura a libertinagem doutrinária e
moral. De acordo com Vênâncio (2012, p. 47):
Por
causa desse tremendo desequilíbrio entre as forças conservadoras e
progressistas hoje, considero muito saudável, e verdadeiramente contracultural,
o posicionamento cristão de tendência conservadora, que em nossa época deve
assumir a defesa de pontos básicos e biblicamente legítimos [...] A firmeza
nesses assuntos é necessária e tem seu lugar, desde que, evidentemente seja
madura e bíblica (e não histérica e legalista), sem alçar a militância
conservadora à categoria de identidade cristã.
Fato
é que a cristandade necessita de um cristianismo genuinamente bíblico, que
forneça uma crença correta a respeito não somente da divindade de Cristo, da
veracidade dos milagres e da inerrância bíblica, como também da maneira como
esses temas impactam a vida prática dos fieis. Isto envolve as famílias, a
responsabilidade social da Igreja, o engajamento político, a posição da Igreja
diante das demandas pós-modernas, como a homofobia, o aborto e a eutanásia. São
temas que nem o liberalismo nem a neo-ortodoxia se preocupam em resolver.
Liberalismo teológico envolve liberalismo moral, logo tudo é aceitável,
contanto que seja politicamente correto, ainda que biblicamente condenável. Se
por um lado não se pode ceder a um dogmatismo superficial e castrador, por
outro não se pode sucumbir a uma fé desprovida de conteúdo bíblico.
BIBLIOGRAFIA
CRAIG, William Lane. Apologética contemporânea: a veracidade
da fé cristã. São Paulo: Vida Nova, 2012.
GEISLER, Normam. In Apostasia, Nova Ordem Mundial e Governança
Global: uma compreensão cristã do fim dos tempos. Paraíba: Visão
Cristocêntrica, 2012.
LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
LOPES, Augustus Nicodemus. In Apostasia, Nova Ordem Mundial e Governança
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Cristocêntrica, 2012.
PIERATT, Alan B. O evangelho da prosperidade: análise e resposta. São Paulo: Vida Nova,
1993.
SOARES, R. R. Como tomar posse da bênção. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 2009.
VENÂNCIO, Norma Graga. Mente de Cristo: conversão e cosmovisão
cristã. São Paulo: Vida Nova, 2012.
WASHER, Paul. 10 Acusações contra a Igreja Moderna. São Paulo: Editora Fiel,
2012.
SITES
GRACONATO,Marcos. http://igrejaredencao.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=94:neo-ortodoxia-um-perigo-camuflado&catid=17:pastoral&Itemid=114.
Acessado em 03/04/2015, às 12:03hs.
http://novomanifestoreformado.blogspot.com.br/2013/12/neo-ortodoxia-ou
neoliberalismo.html. acessado em 03/04/2015, às
12:13hs.
https://teologiacontemporanea.wordpress.com/2009/10/07/neo-ortodoxia-analisando-os-pressupostos-teologicos-do-novo-liberalismo/.
Acessado em 03/04/2014, às 21:31hs.
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